Por Luiz Carlos Heleno

Do portão do pequeno cemitério junto à Igreja Bom Jesus do Saivá, em Antonina, um rapaz (creio tratar-se de um morador de rua) sai em direção à praça da Estação, onde se acomoda junto com outros rapazes, e ali passam boa parte do dia sobrevivendo de esmolas que ganham de pessoas que transitam pela região, ou por conta de cuidarem dos carros das pessoas que frequentam os cultos e missas das igrejas nas proximidades do Hotel Capelista e da Praça Coronel Macedo.
Toda vez que a gente pensa em Antonina ou fala sobre a cidade, quase sempre vem à tona falas sobre a beleza, a calmaria, a magia, e por aí vai. A cidade é tudo isso de fato (toda lindinha, dizemos), mas Antonina também é ruína. E a ruína em Antonina também é bela, ou pelo menos impactante, e pelo que eu vou percebendo em minhas andanças por aqui, ela se diferencia das ruínas nas grandes cidades.
Por questão de déficit habitacional, as pessoas (mendigos ou não) ocupam boa parte dos espaços abandonados nas grandes cidades. Às vezes de forma organizada (São Paulo é um exemplo), e noutras vezes, de forma desordenada pelo simples fato de que as pessoas precisam de um local para morar. Simples assim. Aqui em Antonina não percebi pessoas saindo ou entrando das ruínas que se espalham pela cidade. Também não averiguei com ninguém se existe ou não esse movimento. A crônica me serve como elemento de observação do fato em si, sem o caráter mais profundo que caberia ao debate sobre morar/habitar. Não perguntei ao rapaz que encontrei saindo do cemitério se ele mora ali ou não; mas voltei ao cemitério outras vezes, e não percebi sinais que pudessem caracterizar ambiente de moradia ou submoradia – colchão, estrado, roupas de cama, ou utensílios em algum canto. Nada. Nem nas outras ruínas da cidade por onde tenho passado há quase quinze dias.
Então, as ruínas de Antonina têm algo de tristeza e melancolia pelo abandono, têm muito de beleza pelo que suscitam presenças silenciosas do passado (lembranças, passos, vozes, convivências, amores, desventuras, etc.), e têm algo de desafiante em seu conjunto material, pela presença que nos desafia a céu aberto pedindo uma inversão ou atenção no cardápio de prioridades: a frase de Karl Marx e Engels.ribombando em minha cabeça – “tudo que é sólido desmancha no ar”.
Num ano em que as tristezas e mortes nos cercaram, a gente se aproxima de dezembro com secura na boca e aspereza no coração. A gente se flagra feito uma pequena ruína de nós mesmos. Invejei, por alguns momentos, e egoisticamente, a vida daqueles rapazes que se largam diariamente na praça (sem a coragem que eles têm empurrados por todo tipo de mazela social e pessoal) – digo egoisticamente, porque é quase certo que eles perderam seus vínculos, e suas alegrias e tristezas encontram pouco eco na vida dos transeuntes, enquanto eles vão vivendo apenas o dia de hoje, a sorte ou o azar de hoje, sem qualquer perspectiva pra além da próxima esquina.
Outro dia, sentado junto a janela do Café Maná, percebi que um dos mendigos da cidade se aproximou e – falando em tom muito baixo, que quase não o ouvi – pediu que eu lhe pagasse um lanche. No impulso de desejar que ele também fizesse parte do meu mundo real (não é o dele), disse a ele pra por a máscara e entrar no Café pra escolher o lanche – mais uma de minhas gafes: o cara não tem grana pra comprar um salgado, como é que vai ter grana pra comprar máscara? E sabe-se lá se ele, caso tivesse máscara, seria bem-vindo no espaço interno do Café, ainda que eu me responsabilizasse por sua presença ali só pra escolher o lanche. Não percebi (e isso distensiona um pouco a situação) nenhuma objeção dos servidores do Café com relação à aproximação do homem até mim. Para atenuar minha gafe, entreguei a ele pela janela o lanche que eu havia escolhido para mim. Comprei outro, enquanto o homem seguiu seu destino por entre as ruelas de casas históricas preservadas e ruínas, dobrando a esquina do trapiche saciado momentaneamente da fome diária.
Achei de achar que a história de vida de cada um de nós, numa analogia, pudesse ser comparada a uma construção. Comparação frágil, tenho de reconhecer. Ouvindo certa vez um palestrante, ele citou uma frase, que compõe o título de um livro de Cyro Correa de Oliveira Lyra: “casa abandonada, ruína anunciada”. Numa relação com o recente grito de resistência compartilhado por muitos de nós, de que “ninguém solta a mão de ninguém”, temos de reconhecer com gratidão por estarmos longe de situações de abandono, ao mesmo tempo em que nos vemos impotentes diante de milhões de pessoas que, feito as ruínas nas cidades, subvivem arrastando fragmentos de suas histórias a céu aberto, num sem fim de descaminhos e horizontes mais assombrosos que os que nos cercam. A mais letal de todas as ruínas é aquela que nos cega enquanto seres humanos, a que vê no outro ser humano uma constante ameaça, passível de ser eliminado pelo simples fato de existir sobre o solo do mesmo e ainda saudável planeta, embora bastante ferido.
