OS NÃO RENTÁVEIS

Adalberto Fávero (Julho de 2021)

Enfim, a Barbárie

                                   “Janela sobre um homem de êxito:

                                               Não pode olhar a lua sem calcular a distância.

                                               Não pode olhar uma árvore sem calcular a lenha.

                                               Não pode olhar um quadro sem calcular o preço.

                                               Não pode olhar um cardápio sem calcular as calorias.

                                               Não pode olhar um homem sem calcular a vantagem.

                                               Não pode olhar uma mulher sem calcular o risco.”

                                                                                                              Eduardo Galeano

                                               “A miséria é não saber pensar, nem dar à memória

 mais recordação que a dor…” (Francisco Bilbao)

Neste final de semana de julho de 2021 o Brasil ultrapassou a meio milhão de mortos oficiais, vítimas do covid 19. Na verdade, essas mortes não são apenas vítimas de uma doença. Há razões políticas, econômicas, culturais e sociais objetivas que propiciaramum verdadeiro assassinato coletivo. Há um projeto de morte que promove o genocídio, o extermínio, a eliminação ou a destruição absurda da vida e de muitas vidas.

            A mídia destaca os famosos ou os casos atípicos dos que morrem. A maioria fica sem nome, sem registro, sem esperança e sem mesmo poder viver sua dor. Não são “somente” 523.000 que perderam a chance de viver mais e com dignidade. Os sem nome, os que morreram sem registro somam, no mínimo, outro tanto de falecimentos. A eles acrescente-se a fome que atingiu milhões, o desemprego e a miséria que fez mais de vinte milhões voltarem à linha de pobreza e outros quantos caírem na desesperança; acrescente-se os que não tiveram acesso a hospitais por outras doenças e a violência dos vários tipos de milícias que assassinaram vertiginosamente pelo pais.

            Este projeto de morte tem donos e tem apoios de uma parte da população. Raivosa e discriminatoriamente mata; assassina sobretudo os mais vulneráveis e já historicamente marginalizados num país rico, mas voltado para enriquecer uma minoria pequeníssima da população.

            Eduardo Galeano, esse contador de histórias, de sonhos e esperança, destacou com assertividade de quem vive as dores de seu continente:

“As pulgas sonham em comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico de sorte chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.

Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.

Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:

Que não são embora sejam.

Que não falam idiomas, falam dialetos.

Que não praticam religiões, praticam superstições.

Que não fazem arte, fazem artesanato.

Que não são seres humanos, são recursos humanos.

Que não tem cultura, têm folclore.

Que não têm cara, têm braços.

Que não têm nome, têm número.

Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.

Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.”

            Em artigos anteriores destaquei elementos da estrutura de poder que impera no atual arranjo global, a constituição do indivíduo empresário, o lugar da escola e universidade neste projeto, o gestor que faz às vezes de patrão e a  necessidade de insurreições e de tecer novos sonhos.

            Neste artigo, pretendo retomar elementos deste projeto de morte em execução pelo viés do capital improdutivo e pela exclusão dos não rentáveis, pois é neste campo que se instala definitivamente a barbárie e o extermínio de milhares/milhões de vidas.

            Pergunto-lhes, sem ter boas respostas: O mar acaba no horizonte ou cairemos do mundo? Nossa vida vai nascendo de morte em morte? Quando haverá hospitais sem doentes, onde hoje há doentes sem hospitais? Quando os mudos serão os locutores? Quando será possível decapitar a semente da tristeza? Até quando cultuaremos Dom Quixote e maldiremos Lampião, nosso cavaleiro andante? Quando o piar da coruja fará eco em nossa alma? Quando acontecerá do carnaval começar na quarta-feira de cinzas e a música bailar os corpos, devolvê-los à terra e os fazer voar novamente? Quando se irá em plena quaresma cozinhar-se de amores? Quando o jejum e a abstinência deixarão de ser a vida das maiorias durante a vida inteira? Quando se deixará de ficar doente de cima para baixo, como nestes dias acinzentados? Haverá momentos em que não se viverá dias monótonos e iguais, sem beber ou fazer amor sem culpa ou sentir sem saber? Quando se entenderá que Deus não tem religião? Quando se poderá roubar outra vez a maçã da árvore do paraíso?Quando se deixará de viver a mesma estação de outono em que as folhas caem? Quando se acenderá de novo o horizonte?Quando os sonhos não terão mais que respeitar os sinais de trânsito e as restrições comerciais? A memória seria sobre o passado ou seria um ponto de partida como para os navegantes?

            Há que se fazer perguntas e sonhar alternativas, tecer outra vez as reciprocidades e a alteridade que atingiram o âmago de nossa vida e das nossas relações nestes tempos cinzentos, porém não se pode fazer isto ao custo da morte. Escuto amigos e parentes dizendo que religião e política não se deva discutir, porque isto nos separa. Acho que esta seja uma posição cínica. Creio ser indispensável discutir a política sim, pois o que nos separa não são os partidos, os nomes de políticos ou a caricata democracia que se vive. O que nos separa é a defesa da vida, o cuidado com o outro e a cegueira para as maiorias sem nome de quem se arranca toda esperança, enquanto se cultua as relações de sangue ou de preconceitos. Aí está o real partido, não?

             Este é um tempo em que os não rentáveis são dispensáveis no voto, na vida e nas condições de existência. É o fim do social e a barbárie está instalada, explícita ou maquiada com discursos “inconsequentes”.  O fim em si é o mercado e o seu controle pelas corporações é absoluto, sem lugar (até mesmo) para falar em oferta e procura, demandas sociais, políticas de renda mínima ou democracia direta e participativa. Este controle pelas corporações, o rentismo como  prática dos mais ricos, o fim do estado para o cidadão, os juros da dívida pública que exercem sangria permanente dos impostos pagos pela população, a aliança dos três poderes para manter seus privilégios e o ódio pelos pobres e miseráveis, formam uma rede de exploração e exclusão em que não há mais lugar para os comuns e os ninguéns sobreviverem. Entender mais um pouco desta organização e este sistema nos ajuda a perceber a dimensão da barbárie imposta pelo sistema (e seus representantes) e a urgente necessidade de alternativas para as insurreições em defesa da vida.

             É cada vez mais evidente que o interesse dos ricos não cabe nas urnas, mas o que o sistema atual nos impõe ultrapassa de longe a questão do voto e da participação pontual do cidadão. As mudanças estruturais na organização do capitalismo tem, no seu deslocamento para o acesso e o mercado de/na rede uma de suas principais características. Hoje paga-se pelo acesso e quanto mais gente paga gera-se mais dividendos às empresas, as quais não tem mais custo inicial da produção, só manutenção. O controle do acesso ao conhecimento, cultura e lazer gera lucros estrondosos e a desigualdade aumenta. O acesso poderia gerar muito mais possibilidades criativas e oportunizaria geração da redução da desigualdade, no entanto o mundo desenvolvido controla 97% das inovações (ver Dowbor em “O Capitalismo se Desloca”, os 180-81).

             Esta mudança, juntamente com o controle dos nossos dados, de nossos movimentos e de nossas conversas pelos gigantes econômicos e tecnológicos, acarreta uma transformação estratégica na participação do cidadão, bem como nas suas possibilidades de sobrevivência, empregabilidade, mobilização à presente e às futuras insurreições.

           A esquerda democrática não percebe (ou não deseja perceber) que a liberdade decisória não existe na democracia de mercado, já que a coerção decisória é que funciona sob perspectivas diversas. A liberdade acaba sendo a liberdade de compra e venda de mercadorias e negociações que se julgarem necessárias. Quem não pode participar deste jogo é atirado à miséria com os lamentos oficiais de praxe. Todos tem direito de ser aquilo que a sociedade de mercado lhes oferece, inclusive o direito de morrer e de preferência calados. Assim, a pauperização, a destruição da natureza e a aniquilação das estruturas de proteção social vão se juntando e revelando o rosto verdadeiro da atual democracia de mercado, ficando a aniquilação da civilização ocidental exposta e a nova barbárie instalada, com a democracia devorando seus próprios filhos (Robert Kurz).

Não há mais lugar para a política tradicional, exceto como farsa ou saída

de emergência, pois ela não dá mais conta do contexto atual e das novas formas relacionais de mercado. Há uma “mão invisível” que governa e decide. O jogo para nós, cidadãos comuns, é cada vez mais insano.

Importa pensar um pouco como se organiza o poder das grandes

corporações e seu domínio cada vez maior e determinante na estrutura econômica e política atual.

           Hoje, por exemplo, se destrói o planeta em benefício de uma minoria. O Word Wild Fund (WWF) constatou que entre 1970 e 2010 (40 anos) destruiu-se 52% da fauna do Planeta. 8 indivíduos são donos  de mais riqueza que metade da população mundial, enquanto mais de 800 milhões de pessoas passam fome. São donos de papéis que não rendem numa lógica semelhante aquela ao rabo abanar o cachorro.

Nos EUA (outro exemplo) a metade da base inferior da população foi  

excluída do crescimento econômico entre 1970 e 2014. Enquanto a economia cresceu 61%, para os 10% mais ricos, cresceu 121% e 636% para os 0,001 do topo. Esse é um padrão que (senão idêntico ao menos com grandes semelhanças) repete-se no mundo todo. A concentração de renda global é obscena. Estamos destruindo o planeta em benefício de um terço da população mundial ou, mais verdadeiramente, para o 1% que concentra a riqueza.

É necessário parar esta marcha absurda, repensando a governança

corporativa e a não produção pelo sistema rentista que acumula lucros improdutivos e sangra orçamentos e esperanças das maiorias sobreviventes. As instituições do Estado aliam-se ao modelo espoliador para manter seus privilégios e condenam esta e a próxima geração à miséria e a morte. No Brasil, os três poderes da república vivem num bunker de poder, politicismo e dinheiro; vivem em Brasília, mas muito longe do Brasil.

Alguns exemplos são ilustrativos acerca da atual capacidade de

interferência ou de controle decisório na atual organização do planeta. Imagine o poder de uma Blak-Krock com um faturamento de 14 trilhões (quase o PIB dos EUA) ou da Bayer ao se fundir com a Monsanto sobre a agricultura. Segundo o Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica 147 grupos, 75% bancos, controlam 40% do sistema corporativo mundial, 16 deles controlam todo o sistema de comodites do planeta (Dowbor).

Ladislau Dowbor (A Era do capital Improdutivo) observa que os

oligopólios financeiros drenam a economia real sistematicamente. JPMorgan Chase, Bank of America, Citigroup, HSBC, Deutsche Bank, Santander, Goldman Sachs e outros tiveram um balanço de 50 trilhões de dólares em 2013, quando o PIB mundial era de 73,5 trilhões e a dívida mundial na ordem de 51,8 trilhões (os Estados devem aos oligopólios). Obviamente que os Estados e suas populações estão nas mãos destas corporações e o serviço da dívida causa sangria permanente nos orçamentos formados com os impostos pagos pela população.

Não há mais sentido em pensar em limites territoriais e soberania do

Estado ou no antigo Estado nacional como referência de análise e luta, porque eles não existem mais naquele sentido e porque as elites locais são aliadas ou representantes destes grupos que controlam o sistema. A atual globalização é a instrumentalização do neocapitalismo e do neosujeito, sendo os seres humanos cada vez mais supérfluos. O indivíduo auto empresário torna-se empresário da miséria como catador de lixo, doméstico, malabarista de sinal de trânsito, logista de uma porta só, assessor on-line 24 horas por dia e odeia os pobres e mal vestidos.

Enquanto isso, o capital atual vagabundeia em oásis de rentabilidade

nos paraísos fiscais e se apregoa a liberdade do mercado para que você não reclame dos preços e vote em eleições em que se escolhe aqueles por quem será devorado.

Os paraísos fiscais (Dowbor) manejam, na atualidade, de um quarto a

um terço do PIB mundial, sendo que o Brasil participa nesta farra com cerca de 520 bilhões, aproximadamente. Ao apertar a vigilância das grandes fortunas elas desaparecem do controle e vão para os paraísos fiscais, como naquelas ilhas em que os piratas eram intocáveis. São os gigantes financeiros que os gerenciam, facilitados pela imaterialidade do dinheiro nos computadores. Neste contexto a massa da população é supérflua e sua morte uma estatística que, às vezes, causa algum incômodo.

A ONU, nesta ordem mundial, poderia interferir? Perceba-se que a ONU

tem um orçamento de 40 bilhões (mais ou menos) e os gigantes financeiros com uma média de 1,8 trilhões. Os “órgãos reguladores” apenas podem observar, as agências dão notas aos países e os gigantes compram suas notas com dinheiro. Quando flagrados pagam multas e ninguém é preso.

 Este imperialismo de exclusão protege os paraísos fiscais, usam a

defesa da ordem e segurança como convencimento público a peso de ouro com o anúncio da esperança de que o atual purgatório é caminho efetivo para o céu. O modelo rentista se mantém e faz imperar a barbárie. Mas e daí que morram ou passem fome milhares e milhões? Apresentam-se como salvadores do ocidente e tem apoio da parte da população que se julga privilegiada ou de pobres alijados de sua capacidade de pensar a vida e o futuro. Porém não há mais civilização!

A barbárie faz com que parte da humanidade encontre-se em fuga, seja

como refugiados fisicamente ou como refugiados do mundo, à margem da vida. São aquela parte da população supérflua que não tem mais lugar ou são dispensáveis no capitalismo de renda financeira; são ilegais obrigados a burlar a lei; são seres humanos não rentáveis, por isso dispensáveis.

Ainda usando Dowbor, “A Era do Capitalismo Improdutivo”, destaque-se

que um governo só é confiável se o mundo financeiro assim o define e não se ele atende os cidadãos e os interesses nacionais. No lugar da res publica passa-se à mer catori.  Dowbor apresenta um quadro interessante sobre esta nova face do Estado:

“Estado do Cidadão                         Estado do Mercado    

              Nacional                                          Internacional

               Cidadãos                                        Investidores

               Direitos civis                                   Direitos contratuais

               Eleitores                                         Credores

               Eleições (periódicas)                      Leilões (contínuos)               

                Opinião pública                             Taxas de juros

                Lealdade                                       “Confiança”

                Serviços públicos                          Serviços da dívida” 

            (Fonte: Wolfgang Streeck, Buying Time- Verso London, 2014, p,81)

Obviamente que entre a opinião pública e a avaliação de risco a opção

é pelo último, no lugar do bem estar social a austeridade e o lucro. Eis aí o fim do Estado para o cidadão, das instituições protetoras dos cidadãos e das políticas sociais…enfim a barbárie!    

Os não rentáveis são dispensáveis no voto, na vida e nas condições de

Existência. Trata-se do fim do social, o mercado como fim, o lucro como  referência e o poder das corporações como o absoluto.     

A dívida pública no mundo está na ordem de 50 trilhões (só os EUA 15

trilhões). A captação rentista sobre os juros desta dívida é absurda. Os cidadãos pagam impostos e os juros da dívida comem uma parte estrondosa (isso pensando um PIB mundial na ordem de 75 a 80 trilhões) da possibilidade de investimento local. Todos pagam os impostos e uma minoria ganha lucros obscenos. Trata-se de uma transferência maciça de recursos públicos para os rentistas. Em 2015, por exemplo, 500 bilhões (9% do PIB brasileiro) foram retirados de nossos impostos para o serviço da dívida, leia-se para bancos e outros investidores. A selic é o instrumento de segurança dado ao mercado e aos rentistas que garante a remuneração certa e acima da inflação.

Só sujeitos rentáveis servem para este sistema. Ainda que seja um

grande desaforo, esta premissa foi imposta a todos e é aceita como normal. No entanto é um esquema de aniquilação e de uma barbárie incomensurável, com precarização de espaço de trabalho, de investimento público e de esperança no futuro. Neste caminho a derrocada social é estrondosa e a barbárie impera para os não rentáveis, enquanto cresce contra eles o ódio dos “homens de bem.”. Só resta a implantação de um Estado carcerário e de eliminação dos improdutivos. Nada que a fome, uma epidemia ou as milícias não resolvam!

Neste contexto, o Estado transformado em administrador de

Emergências e que não controla mais nada, se desfaz dos serviços públicos como um rico arruinado e falido. Privatiza e perde mais o controle. A educação passa a ter duas classes, a saúde ser um bem de segunda, o pobre morre mais cedo e aumenta o exército de decaídos.

Ressurge o “trabalho por amor” sob o nome de voluntariado, cresce a

violência, aumenta o desemprego e a concorrência pela sobrevivência. Aqui no bairro onde moro, por exemplo, os carrinheiros passaram a ter uma concorrência imprevista. Já pela manhãzinha, carros velhos com carretas, kombis com armação sobre os capôs, caminhões pequenos e barulhentos (quase todos eles soltando a fumaça que anuncia o motor em colapso) passam e recolhem todo “lixo que não é lixo”. Os carrinheiros que usam apenas a força  das pernas e dos braços quase desapareceram, pois ao chegar não encontram mais nada para catar e conseguir sobreviver. Devem ter sido jogados para uma periferia mais distante, na qual certamente não encontrarão aquele mínimo insuficiente para a própria sobrevivência. . A miséria cresce, a fome aumenta e o descaso (com esses agora mais ninguéns que antes ainda) avança.

Estamos voltando séculos atrás na segurança social, na possibilidade de

 vida minimamente digna, nas leis trabalhistas e nas relações de reciprocidades entre as pessoas. Malthus inspira os governantes de plantão e o darwinismo social cresce? É isto e mais que isso. Trata-se de um projeto de controle global até então nunca possível em favor de uma minoria que consome o planeta, as vidas dos seres humanos e mata indiscriminadamente, muitas vezes em nome da civilização, de deus e dos homens de bem.

Neste atual momento do capitalismo não há mais sociedade, apenas

Indivíduos (empreendedores). Tudo pelo negócio, inclusive a relação com o eu. Os atuais analistas econômicos dão a impressão de entender tanto de economia quanto Marx entendia de motociclismo, mas continuam a profetizar sobre o mundo, as coisas, o futuro e sobre nossas vidas.

Os rentistas não servem à economia e sim se servem dela, o que gera

produtividade líquida negativa (Dowbor). Eles vivem à custa da economia real, extraindo dinheiro das empresas e do Estado a todo custo e sem qualquer cuidado ético. A título de exemplo da exploração exercida pelo sistema financeiro improdutivo: em 2016 o Deutsche Bank sofreu multa de 14 bilhões por fraude (EUA); o Citigroup de 12 bilhões; o Golchuan Sachs de 5, 06 bilhões; o JP Morgan 13 bilhões e assim por diante. Só a multa do Deutsche Bank equivale a uma vez e meia a bolsa família que retirou mais de 30 milhões de pessoas da miséria.

A mídia, as corporações, a maioria dos economistas e parte da classe

média criam um discurso e um imaginário de que o problema maior do país sejam os impostos. E escondem propositalmente ou por ignorância, não sem interesse, que o real problema sejam os juros e a sangria permanente, exercida sobre o que pagam todos os cidadãos, sobretudo os trabalhadores com carteira assinada. É elucidativo sobre isto os 501 bilhões (9% do PIBBR) transferidos para grupos financeiros em 2015 e garantidos a partir da taxa SELIC (estabelecida a partir de 1996 no governo FHC)…

Enfim, o capital financeiro improdutivo é um parasita a chupar nosso

sangue com juros estrondosos nos cartões ou empréstimos e nos impostos sobre a dívida, transferindo para bancos e corporações diversas a produção real e a força de nosso trabalho.

Registre-se, para encerrar esta questão, que as exportações brasileiras

equivalem a 10% do PIB e o mercado interno, motor de qualquer desenvolvimento, equivale a 60% (mais ou menos). No entanto, as famílias estão endividadas com juros absurdos, somados à precarização do trabalho e salário. Cerca de 58,3 milhões de brasileiros estavam nesta situação entre 2015 e 2016, o que emperra qualquer movimento de crescimento de bem estar e/ou da economia em geral. .Neste período o estoque da dívida das famílias já chegava a 46,5% de seu total.

Em tal contexto de exploração, improdutividade do capital financeiro,

juros absurdos e obscenos e endividamento das famílias há cada vez mais abandonados e deserdados pelo capital. Os quintais abandonados estão repletos de desempregados e não rentáveis. Empurrar milhões para a miséria é a saída para a sobrevivência deste modelo de capitalismo faminto de lucros e devorador de vidas. Só nestes dois últimos anos, mais de 20 milhões de famílias voltaram à linha de pobreza, enquanto entre 13 a 19% da população (vestido de verde amarelo) apoiava os discursos oficiais de morte e acusavam os pobres e desempregados de vagabundos que desejavam ficar em casa, aproveitando a pandemia. Não há espaço possível para o andar debaixo numa sociedade tipo galinheiro, onde os de cima defecam (cagam) sobre os debaixo. 523000 mortos oficiais, mas e daí?

Enquanto isso, a esquerda acadêmica pós Marx (pós tudo) abandonou

as bases da crítica da economia política; assim negam “qualquer dialética de forças produtivas e relação de produção…para dar lugar a uma unidimensional e francamente reacionária crítica das forças produtivas que antes tinha assombrado os anos 80,” (Robert Kurz). Agora se discute a identidade, as teorias das fontes e não há lugar para a análise da economia, do social e do político…e muitas vezes sob o argumento de dar voz aos sem voz.

Os professores do Ensino Básico encontram-se encurralados pela

pressão de  pais, pelo discurso de escola sem partido, por instituições com medo de perder clientes, com sistemas educacionais públicos preocupados em não perder a verba estadual ou federal, com o antidiscurso de gênero… Condena-se uma geração inteira a não ler além do texto, a não pensar além do permitido, a não andar além da risca, a não olhar além do quintal de casa, a não amar além do permitido. Terá o amanhã falecido? Amar não pode mais ser conjugado além do passado? Será obrigatório andar mutilado de amigos e tristeando a solidão?

A renda mínima, vista como benesse aos vagabundos pela elite rançosa,

seria saída óbvia e favorável ao próprio capital mercado com baixos custos e facilmente bancada, por exemplo, pela taxação das grandes fortunas. Ajudaria, inclusive, à transparência dos impostos pagos por todos e sobre tais recursos ou sobre a sua evasão. Contribuiria para diminuir a dívida pública e movimentaria a economia pela sua base, retirando milhões da miséria.

No entanto, esta não parece ser uma discussão relevante para a elite

dirigente do país e para a parte abastada da população que odeia e despreza os pobres, os mau vestidos e os ninguéns. Esta é uma das razões sérias e fundamentadas de uma dúvida crescente: estamos a caminho de um porto ou do naufrágio? Hoje anda mais fácil pensar num capitalismo sem mundo do que num mundo sem capitalismo.

            Mesmo assim, sempre é possível inventar razões e argumentos para

justificar a exploração e o assassinato de milhares, condenando-os à fome, ao anonimato, à perda da esperança e a assistir seus filhos desnutridos ou sem enxergar nenhum futuro.  Mas quem mente peca porque trai a verdade das palavras e da vida, como dizia Ernesto Cardenal.

“Mentimos, trapaceamos regras éticas frequentemente, quando

achamos que podemos sair impunes, e então usamos o nosso raciocínio moral para gerir a nossa reputação e nos justificar para os outros. Acreditamos no nosso raciocínio a posteriori tão profundamente que terminamos moralisticamente convencidos de nossa própria virtude…Somos tão bons nisto que conseguimos enganar até a nós mesmos.” (Haidt, Jonathan)

Parece estarmos numa encruzilhada que exige rebelião contra o

descaso e em favor dos esquecidos, de nossos filhos, da geração que vem depois da nossa e para garantir a nossa própria geração a possibilidade da esperança e da reinvenção dos sonhos. Não se esqueça, porém, que o vento refresca e o ciclone arrasa, mas os dois são vento. Nossa palavra, nossa ação, nossa vontade e nossa reciprocidade ou ausência dela marca o mundo e tece a história. Criticar apenas o mercantilismo do mundo é ficar no mundo do mercado e atualmente o público garantido pelo Estado é apenas exceção; o comum e o inapropriável, porque de todos e para todos, não é regra. A lei continua sendo a do mercado.e nesta regra não importa o ser humano, pois ao homem econômico a exploração predatória dá conta e  destrói o que é comum.

As mulheres, os aposentados, as crianças, os desempregados e outros

não rentáveis, insista-se, são desimportantes para a economia e democracia de mercado. Em razão desta premissa, para eles não há Estado, renda mínima, colchão social, políticas públicas ou solidariedade coletiva. São custos e nunca investimentos para tecer uma nação digna, justa, diversa e igualitária.

Talvez seja por esta razão, como diz Robert Kurz, que “o novo

radicalismo de direita também…é um radicalismo contra o melhor conhecimento, em raciocínio cínico  em que frases racistas e nacionalistas são utilizadas de forma pilhérica e maliciosa para transformar a preocupação com a própria vida em provocação e exibicionismo.” Esse radicalismo tem impacto, causa reação como um soco no fígado, nos faz pisar tristezas e ficar com vontade de descaminhar,  num Brasil que virou campo de concentração, com as defesas de ultradireita apoiadas por uma parte da população que tem o dinheiro e o  sucesso como critério de vida e opção que mata.

A direita extrema encontra espaço para investir violentamente na

desintegração da coesão social e a reciprocidade não é um dom inato e nem a democracia um estado absoluto e eterno. Por isso mesmo, o movimento libertário em vista do comum não pode ser espontaneísta e nem acreditar que será fruto de milagre ou benesse da elite ou uma divina revelação e graça do deus da prosperidade em moda nas igrejas atuais.

O Comum e a utopia reinventada são tecidos pela interação social e

podem ser forças subversivas no domínio crescente da economia que quebra todo tipo de reciprocidade. Esse comum e esta utopia não é dádiva e nem dado natural. É resultado da ação da coletividade da sociedade, do agir humano gestado pelos/nos recursos comuns, materiais e imateriais. Cabe aos democratas superar a democracia!

Sonho com o dia em que a arte, a poesia e a ciência durmam na mesma

cama e desvestidas das roupas de dormir, porque apenas assim elas se tornam uma e diversas ao mesmo tempo. Neste dia não se anulará mais ninguém como pessoa em nome da defesa do indivíduo; não haverá mais uma só verdade e sim diversas e a não verdade será apenas a outra verdade ao contrário; não importará apenas a globalização realizada pelas corporações e sim a ação de reciprocidade local que nos torna cidadãos do mundo; a democracia, então, não terá mais dono.

Homo sapiens? Certamente não o somos! A barbárie está aí para deixar

tudo claro! 6 milhões de crianças mortas todo ano, 850 milhões de desnutridos, provam isto, não? É fato que sabemos fazer o bem, mas tem parecido mais fácil navegar no ódio e na separação.O mundo necessita de aliança entre os povos e não um Estado global, pois os Estados que deveriam garantir os direitos, hoje garantem a propriedade e os bens.

Enfim, como reinventar e reencantar o mundo e a vida? Ainda haverá

caminhos a caminhar? Onde andarão os sonhos? Por onde ajudar a fazer do mundo e do Brasil um lugar a ser vivido com felicidade?

“A beira do mar de outro mar, outro oleiro se aposenta, em seus anos

finais. Seus olhos cobrem-se de névoas, suas mãos tremem: chegou a hora do adeus. Então acontece a cerimônia de iniciação: o oleiro velho oferece ao oleiro jovem sua melhor peça. Assim manda a tradição, entre os índios do noroeste da América: o artista que se despede entrega sua obra prima ao artista que se apresenta.

E o oleiro jovem não guarda esta peça perfeita para contemplar e

admirar: a espatifa contra o solo, a quebra em mil pedaços, recolhe os pedacinhos e os incorpora à sua própria argila.” (Eduardo Galeano)

É isso! Há que se reinventar o mundo, as relações e as esperanças,

juntar os cacos daquilo que tantos julgaram (julgamos) ser sua obra prima; insurgir-se com tudo que está pronto e gestar utopias e esperanças; há que se esperançar ou não existirá presente. O futuro e a história é quem dirá!

Bibliografia (Sugestões de Leituras)

Castells, M Fim de Milênio. Ed. Paz e Terra, 1999, São Paulo

—————  A Sociedade em Rede. Ed. Paz e Terra, 1999, São Paulo

Dardot, P e Laval, C. A Nova Razão do Mundo, ensaios sobre a sociedade neoliberal. Editora Boi Tempo, 2019, São Paulo

———————–Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. Editora Boi Tempo, 2017, São Paulo

———————– A Escola não é uma Empresa. Editora Boi Tempo, 2019, São Paulo

Dreifus, R, A Internacional capitalista. Editora Espaço e Tempo,1986, Rio de Janeiro

___________ Época de Perplexidades Editora Espaço e Tempo,1990, Rio de Janeiro

Dowbor, L. O Capitalismo se Desloca, novas arquiteturas sociais Edições SESC, 2020, São Paulo

—————–Sociedade Vigiada Autonomia Literária, 2020, São Paulo

—————–A Era do Capitalismo Improdutivo. Autonomia Literária, 2017, São Paulo

Galeano, E. Memória do Fogo. L&PM Editores, 2013. Porto Alegre

————- Livro dos Abraços L&PM Editores, 2014, Porto Alegre

————- O Caçador de Histórias. L&PM Editores, 2016, Porto Alegre

————–As Palavras Andantes. L&PM Editores, 1994, Porto Alegre

Kurz, Robert A Democracia Devora Seus Filhos Consequência Editora, 2020, Rio De Janeiro RJ

—————— A Crise do Valor da Troca. Consequência Editora, 2017, Rio de Janeiro, RJ

—————— Poder Mundial e Dinheiro Mundial, crônicas do capitalismo em declínio. Consequência Editora, 2015, Rio de Janeiro, RJ.

Mariotti, H. As Paixões do Ego. Complexidade, Política e Solidariedade,Ed. Palas Athena, 2002, Cambuci SP

Piketty, T. O Capital, no século XXI. Ed. Intrínseca Ltda, 2014, Rio de Janeiro

Santos, M.S. e Mesquida, P. As Matilhas de Hobbes. Ed. Metodista, 2014, São Paulo

                                         

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