Joyce Schmidt Gonçalves
Psicóloga – CRP 08/11402
“Moça, eu queria poder ajudar as outras pessoas, mas no momento preciso pedir ajuda”. Ouvi estas palavras de um senhor de 72 anos que, em meio às lágrimas, justificava o motivo de ter ido à unidade de atendimento socioassistencial CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) solicitar um benefício eventual de cesta básica. Estas e outras tantas pessoas a quem eu tive a oportunidade de atender trouxeram relatos de uma situação de fome e desamparo que, sabemos, acomete milhões de brasileiros todos os dias, mas que com a chegada da pandemia, trouxe (e continua trazendo) um desespero jamais imaginado.
Trabalho na política de assistência social há 11 anos, sempre atuando na busca da efetivação dos direitos e no fortalecimento dos usuários como sujeitos dignos desses direitos essenciais. Os trabalhos junto às famílias e a outros grupos, as escutas qualificadas, a percepção e o respeito às vivências individuais desses sujeitos, bem como a valorização da subjetividade presente em cada discurso, faz da psicologia uma profissão essencial nesta política social, potencializada na atuação de forma interdisciplinar com os demais colegas na busca do melhor atendimento, orientação, encaminhamento e, principalmente, na acolhida das pessoas. Em um país onde o preconceito com as famílias que vivem em vulnerabilidade social ainda é presente, e o sentimento de exclusão é vivido diariamente pelos moradores da periferia, a acolhida é a primeira ação dos profissionais, que na escuta qualificada e respeitosa, demonstra ao sujeito que o que ele busca não é favor ou motivo de vergonha, mas sim um direito inerente à sua condição humana, garantido a todos por leis constitucionais.
Com a chegada da pandemia do Coronavirus, veio a determinação de que a política de assistencial social é um serviço essencial à população (sempre foi), porém não houve tempo para que estabelecêssemos um protocolo de atendimento. De um dia para o outro os grupos de atendimento foram cancelados, as reuniões foram transferidas, e as medidas de higiene foram implantadas imediatamente (o que não nos isentou dos medos diários de contaminação, mas o apoio e o comprometimento da equipe em que eu trabalho foram fundamentais para que nos mantivéssemos presentes, focados e atuantes).
Assim como a mudança foi repentina para os servidores, também o foi para as pessoas atendidas pelas políticas de assistência social. Os trabalhadores informais ou terceirizados, que prestavam serviços como diarista, motorista, motoboy, manicure, servente, entre outros, repentinamente foram dispensados de suas atividades. Os vendedores ambulantes e as babás não mais tinham seus clientes. Os catadores de objetos e produtos para reciclagem viram suas fontes (restaurantes e lojas) fecharem, o que acarretou em menos lixo depositado nas ruas, além de que os locais de reciclagem onde vendiam suas coletas diárias também estavam fechados. E, para os que tinham filhos em idade escolar, os mesmos foram dispensados das aulas, sendo que é na escola que muitas das crianças e adolescentes fazem sua principal refeição diária. Então, para estes e todos os demais que obtinham sua renda no dia a dia, não houve mais alternativas de conseguir seu “pão diário” e a fome chegou vívida, cruel e apavorante. Formaram-se filas imensas para solicitação de cestas básicas.
Como respeitar as orientações de isolamento social, se em casa não tem alimento?
Iniciou-se um processo de atendimento sócio assistencial no qual, entre um relato e outro dos usuários, as vulnerabilidades e as diferenças estruturais de classe econômica ficavam ainda mais evidentes. Pessoas que nunca haviam procurado a política de assistência social vieram até nós, por não vislumbrar outra saída para atender suas necessidades básicas ou viabilizar minimamente sua situação econômica.
Dois senhores de 65 e 67 anos, amigos e vizinhos, cada um morando sozinho em sua casa, relataram: “moça, nós saímos juntos todas as manhãs para catar material reciclável e no final do dia vendemos e pegamos nosso dinheirinho. Nunca precisamos vir aqui. Porém, agora a cooperativa está fechada, e, além disso, não temos achado mais material na rua… será que você poderia nos ajudar, estamos sem nada pra comer. A gente pode dividir, se for preciso”.
Uma mulher de 31 anos chorou copiosamente a sua impotência, relatando que trabalhava na cozinha de uma lanchonete, porém foi dispensada e não tinha mais como comprar alimentos para seus dois filhos, ainda crianças. “Estou desesperada, não sei o que fazer. Meu ex-esposo me abandonou, disse coisas horríveis pra mim, logo eu que tentei fazer de tudo por nossa família. Não vejo mais sentido pra viver, nem cuidar dos meus filhos eu tenho conseguido”.
Outra mulher, de 35 anos, relatou que ela e o marido trabalhavam como motorista de aplicativo e tinham uma vida razoavelmente tranquila. Disse: “meus filhos estavam na escola e tínhamos alugado uma casa boa. Mas de repente o número de passageiros diminuiu muito, não conseguimos mais manter a casa e o aluguel dos carros. Viemos morar nos fundos da casa da minha mãe, sem perspectiva de conseguir outro emprego. Uma vizinha me falou do trabalho de vocês, então eu vim ver se vocês poderiam me ajudar neste momento, com qualquer coisa”.
Esses e outros tantos relatos de usuários mostram o quanto as pessoas batalham diariamente para conseguir seu sustento de forma digna. E o quanto nós, profissionais que atuam na política de assistência social, somos de fato essenciais na busca incessante de que estes homens e mulheres, adolescentes e crianças, possam se reconhecer como cidadãos, sujeitos de direitos que são, e que devem ser respeitados e valorizados em suas histórias e essências.
Fomos (e ainda estamos) aprendendo no dia a dia, a lidar com estas mudanças que a pandemia nos impôs. Entre os sentimentos de medo e coragem, as equipes caminham juntas, diariamente, cuidando uns dos outros e garantindo o atendimento possível às pessoas que nos procuram. Não conseguimos atendê-las em todas as suas demandas, mas nos esforçamos para que possam viver com o mínimo de respeito e de dignidade, já que não nos é possível assegurar-lhes o justo.
Uma senhora de 69 anos, após o término do atendimento no qual relatou que vendia pão de porta em porta para sustentar a ela, ao filho com deficiência intelectual e ao neto, me disse: “moça, quanta gente vocês estão atendendo aqui né? Vou colocar você e a equipe em minhas orações, para que vocês fiquem bem e com saúde, pois vocês merecem. Muito obrigada viu!” Minha garganta travou, disfarcei os olhos marejados, e consegui resmungar baixinho: “obrigada à senhora”.