A QUEM PERTENCE A AMAZONIA?

Por Meri Tochetto Cardoso,

Doutoranda em Ciencias Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade,

CPDA/UFRRRJ.

Dos mais de 8 milhões de quilometros quadrados que tem o Brasil, 5 milhões ficam na chamada Amazonia Legal, ou seja, na porção amazônica situada nos limites do territorio nacional. Lá vivem 25 milhões de pessoas que são impactadas todos os dias pelos problemas ambientais e sociais que aparecem todos os dias na TV. É o aumento desenfreado do desmatamento e queimadas, mineração em terras indígenas e destruição de áreas protegidas. A lente de todo esse conjunto de informações diárias precisa lembrar que não se trata de uma terra desabitada, ou habitada por brasileiros que não tem condições de decidir o próprio destino. São pessoas e povos amazônicos, indigenas, quilombolas, pequenos produtores rurais herdeiros de assentamentos de reforma agraria. Estes são, juntamente com o restante da natureza, os impactados pelos grandes projetos de mineração e energia, pelo agronegocio e pelos crimes ambientais na região.

            É preciso ampliar o conhecimento da população brasileira sobre a Amazônia. Desde que o Brasil é Brasil, ela muitas vezes foi tratada e vista como uma terra selvagem a ser domesticada e colocada nos trilhos do desenvolvimento nacional. Era comum nas revistas e periódicos dos anos de 1970, por exemplo, manchetes e fotos que diziam: “Rondonia: a luta contra a selva”; “Para unir os brasileiros, nós rasgamos o inferno verde”; “Aqui vencemos a floresta”.

            Os governos militares trouxeram com eles, um projeto de desenvolvimento que identificava o rural ao agrícola e uma narrativa de necessidade de defesa da soberania do Brasil atraves da integração nacional. Um dos lemas daquele período era: integrar para não entregar!

          Uma das consequencias da implantação desse projeto e das políticas públicas que vieram a seguir, foi penosa para os trabalhadores rurais e povos amazônicos que viviam da floresta, pois a terra passou a ser considerada espaço de produção agrícola e pecuária. Mas, ao mesmo tempo, foi benefica para as elites rurais que, por todos os meios possíveis, inclusive através da grilagem, tomaram porções cada vez maiores do território, para a agricultura.

Sob o ponto de vista ambiental, a expansão da fronteira agrícola, a abertura de estradas, e a migraçao de brasileiros de outras regiões do Brasil em busca do eldorado prometido pela progaganda oficial do governo, também foi ruim, pois todo esse movimentos de expansão de campos de agricultura, aberrtura de novas vias de acesso e surgimento de povoados e cidades, expulsou indigenas e demais povos para o interior, além de acelerar a destruição ambiental.

A narrativa corrente e oficial era de que a Amazonia era um territorio a ser conquistado e com um estoque de terras imenso e passivel de utilização para a agricultura.

            Hoje, como um desdobramento desse momento no Brasil em que os olhos se voltaram para uma possivel vocação agricola na Amazonia, um dos temas que mais são debatidos sobre esse tema é a regularização fundiária. Ela foi introduzida no Brasil desde a década de 1990 e transformada em Programa oficial do governo federal em 2009, estando vigente até hoje.

Mas o que significa regularização fundiária? O que ela tem a ver com essa história? E quais são os impactos disso para a Amazonia?

O Brasil tem um grande estoque de terras públicas e nem todas essas terras estão destinadas, ou seja, utilizadas pela União federal. Essas terras que integram o patrimônio público mas estão sem uso, são consideradas como terras sem destinação. Em 2020, estimava-se que o estoque de terras públicas sem destinação na Amazonia era de aproximadamente 50 milhões de hectares. Destes, quase 12 milhoes de hectares nas mãos de grileiros e de pessoas fisicas ou juridicas que estivessem detendo a posse das terras ilegalmente. Ou seja, terras pertencentes ao patrimonio público que são tomadas ilegalmente, desmatadas e colocadas em uma espiral de lucro para o grileiro. A grilagem se dá em terras não destinadas, mas avança também sobre terras indigenas, assentamentos e unidades de conservação. O foco é a retirada da madeira, a mineração e a agropecuária.

Voltando ao conceito de regularização fundiária, ele significa oficializar a propriedade da terra para quem nela vive. Ou seja, é um procedimento que torna terras públicas em privadas. Mas, como a União não tem controle do estoque de terras públicas que possui, esse instrumento pode trazer prejuizos ao cair no poço sem fundo da grilagem, já que pode ajudar a regularizar terras que não deveriam sair do patrimonio nacional, ou que deveriam ser utilizadas para preservação ambiental e proteção de direitos dos povos amazônicos.

Um marco da historia da regularização fundiária no Brasil é a década de 1990, periodo com picos de desmatamento e violencia no campo, em que ela foi vista pelo governo federal como um caminho possível de pacificação do campo e começaram a surgir as primeiras leis e políticas públicas voltadas para isso.

Durante o governo Lula, mais um investimento do governo federal, com a criação do Programa Terra Legal, voltado exclusivamente para implementar o processo de regularização em território amazônico. A ideia mais uma vez era pacificar o campo e dar destinação a terras públicas, evitando assim a grilagem e o desmatamento.

Vamos lembrar que até os anos 60, a Amazônia era constituida basicamente por terras públicas, pertencentes à União e aos Estados. A maior parte delas não era voltada para a atividade agrícola e somente 11% do territorio tinha fazendas de gado ou de agricultura e menos de 1% por cento dos produtores rurais tinha o título de propriedade da terra. Foi a modernização da agricultura implantada pelo governo militar, como já disse que mudou esse panorama.

A pressão sobre as terras públicas que se acelerou a partir da década de 90 foi o gatilho para que o governo federal pensasse e implementasse, via artigo 17 da Lei 8666/93, a regularização fundiária na regiao. Por ela, foi aberta a possibilidade de emissão de titulos de propriedade de terras públicas ocupadas e no limite de 100 hectares e com a condição de que fosse atendido o interesse social.

É interessante observar que a Lei 8666/93 inaugurou uma novo movimento legislativo no Brasil. Naquele momento, o ato de transformar terras públicas em priopriedades privadas estava  previsto em lei. Esse movimento ocorreu de forma paralela a intensificação de uma visão do mundo rural como suporte econômico para a agropecuária e trouxe desdobramentos politicos e econômicos para a Amazonia e para a  noção de territorio enquanto espaço de relações politicas, econômicas e culturais dos povos da floresta.

Já em 2009, a Medida Provisória 458 de autoria do presidente Luis Inacio Lula da Silva, ampliou o escopo da legislação anterior para regularizar as ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal. Por ela, passaram a ser passiveis de regularização as terras devolutas, ou sem destinação, pertencentes à União e que fossem consideradas vitais para a segurança e o desenvolvimento nacional, além das remanescentes de reforma agraria que tivessem perdido a sua vocação agrícola.

O argumento do governo federal na época, era que a regularização fundiária traria maior possibilidade de controle e fiscalização por parte do Estado na Amazonia, e que contribuiria para a redução do desmatamento ilegal, a diminuição da grilagem e dos conflitos fundiários. Em tese, esse controle e fiscalização, em terras regularizadas, tornaria mais facil a responsabilização dos infratores ambientais, por exemplo.

Conforme dados daquele ano, aproximadamente 13% do territorio amazônico era composto por terras públicas sem destinação e que estavam na posse ilegal de pessoas que não possuiam documentação habil que lhes desse legitimidade para a defesa das terras e do meio ambiente. A regularização fundiária foi então, o caminho adotado pelo governo federal, mais uma vez, para diminuir esse descontrole fundiário. Foi também um caminho utilizado para trazer segurança jurídica para os produtores rurais da região.

A comparação dessas duas normas, que tem uma distancia de 16 anos entre sí, demonstra um afrouxamento do Estado quanto ao controle das terras públicas. A medida provisória editada no governo Lula demosntra isso. Enquanto a Lei 8666/93 permitia a regularização de uma porção menor de terra onde comprovadamente houvesse produção agrícola, a MP 458/09 abriu caminho para a passagem de terras públicas para particulares, com criterios bem mais elasticos, mas ainda sob o argumento de que essa legislação traria beneficios ambientais e sociais para a região.

Após o fim dos governos Lula e Dilma, o Programa Terra Legal foi extinto atraves de um processo de flexibilização legislativa iniciado no governo Temer e que chegou ao governo Bolsonaro.

Durante os anos em que foi presidente, Temer tornou extinto o Ministerio do Desenvolvimento Agrário, e juntamente com ele, a maioria das políticas públicas do mundo rural. Entre elas, o Programa Terra Legal. A reforma agraria foi paralisada e a regularização fundiária acelerada, sob o comando do Incra. Foi a chamada época do titulômetro, em que se considerava fundamental passar as terras públicas para as mãos de particulares. Esse caminho foi novamente apontado como caminho para o fim do desmatamento e da violência no campo.

Hoje, o governo Bolsonaro passa a boiada. E a regularização fundiária na Amazônia, o que tem a ver com isso, se pensarmos nos povos que lá vivem? Essa é uma outra história a ser contada.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ÁREA registrada irregularmente dentro de terras indígenas na Amazônia aumentou 55% entre 2016 e 2020, diz Ipam. Revista Época Negocios, 30 mar. 2021. Disponivel em: <https://epocanegocios.globo.com/Sustentabilidade/noticia/2021/03/area-registrada-irregularmente-dentro-de-terras-indigenas-na-amazonia-aumentou&gt;. Acesso em: 10 abr. 2021.

CARDOSO, M. T. DA REFORMA AGRÁRIA A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA: UM ESTUDO SOBRE AGROESTRATÉGIAS PARA A CONSTRUÇÃO DE SEGURANÇA JURÍDICA E GARANTIAS AO DIREITO DE PROPRIEDADE NA FRONTEIRA AGRÍCOLA. Rio de Janeiro: [s.n.], 2019.

LOUREIRO, V. R.; PINTO, J. N. A. A questão fundiária na Amazônia. Revista Estudos Avançados, p. 77-98, 2005.

 

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