Clemente Ganz Lúcio[1]
“Não tenho medo da vida,
tenho medo de não viver.”
Gilmar Ramos, Campo Alegre de Lourdes, BA
Cordel da Juventude do Nordeste
Dirigentes, ativistas e assessores sindicais são os destinatários desse artigo. O objetivo é refletir sobre a profunda reestruturação que o movimento sindical brasileiro deve promover para ser coetâneo com as múltiplas transformações disruptivas que ocorrem no mundo do trabalho, bem como ser capaz de responder aos ataques que vem sofrendo.
Desejo que a leitura contribua para mobilizar a imaginação na busca da reorganização do sindicalismo, para desenvolver a criatividade no sentido de projetar novas estratégias de atuação sindical, para desenvolver a capacidade de cálculo político promovendo transições no processo de mudança.
- A complexidade
Há um contexto situacional de adversidades múltiplas que gera, para muitos, a sensação de que a complexidade dos atuais fenômenos sociais torna muito difícil descrevê-los e prospectá-los no futuro, redundando fugazes os esforços para construir explicações sobre o que acontece e formular projetos e processos de enfrentamento e superação. Portanto, cuidado, a complexidade pode conduzir a um fatalismo imobilizador!
O caminho é perseverar no desenvolvimento da capacidade cognitiva para compreender essas as complexidades do presente e do futuro e, sobre essa base, com método, desenhar projetos de superação, elaborar estratégias de construção e formular utopias transformadoras.
Há futuro para o sindicalismo? Partimos da hipótese de que haverá sindicalismo para responder aos vetores organizadores e mobilizadores do trabalho humano no futuro, bem como às diferentes formas de contratação que irão adquirir as relações sociais de produção, também às novas condições de trabalho, assim como à dinâmica de concentração ou distribuição do produto social do trabalho, da renda e da riqueza. Será um sindicalismo diferente, indicam as reestruturações em curso, mas com a mesma raiz histórica. Por isso, é urgente que o movimento sindical brasileiro tome iniciativas inovadoras para promover uma reestruturação que correlacione e integre a mudança na estrutura e organização sindical à dinâmica que emerge no novo mundo do trabalho.
A raiz do sindicalismo é a solidariedade que une os trabalhadores em movimentos de lutas por utopias como a justiça, a igualdade, o bem viver e que são aplicadas no cotidiano das relações de trabalho e das condições de vida.
Somente serão capazes de protagonizar esse sindicalismo raiz aqueles que tiverem a atenção para o contexto real dos novos trabalhadores, compreendendo as condições em que vivem, seus sonhos, contradições e interações. Os trabalhadores desse novo mundo do trabalho serão os protagonistas do movimento sindical que irromperá.
Cabe-nos hoje, diante das complexidades, a decisão de:
a) considerar que há um novo mundo do trabalho irrompendo;
b) tomar a iniciativa de compreendê-lo;
c) lutar junto com os novos trabalhadores;
d) reorganizar e colocar a atual estrutura sindical para ser, desde já, uma resposta às transformações e estar a serviço do movimento dos trabalhadores e do seu futuro;
e) investir continuadamente na formação e renovação de quadros.
- Os ataques ao sindicato, aos direitos e à proteção no Brasil
As reestruturações institucionais avançaram nos países desenvolvidos e em desenvolvimento, sendo uma delas a reforma da legislação e do sistema de relações de trabalho. Os objetivos foram, e continuam sendo, reduzir o custo do trabalho; criar a máxima flexibilidade de alocação da mão de obra, com as mais diversas formas de contrato e ajustes da jornada; reduzir ao máximo a rigidez para demitir e minimizar os custos de demissão, sem acumular passivos trabalhistas; restringir ao limite mínimo as negociações e inibir contratos ou convenções gerais em favor de acordos locais, realizados com representações laborais controladas; e quebrar os sindicatos.
No Brasil, com a aprovação da Lei 13.467, em meados de 2017, em um lance institucional ousado, o Legislativo e o Executivo transformaram profundamente a legislação trabalhista, o sistema de relações de trabalho no país e fizeram uma reforma sindical contra os trabalhadores. Em síntese, a lei deixou de ser um sistema protetor dos trabalhadores, de equilíbrio de força entre capital e trabalho e passou a ser um aparato protetor das empresas.
A reforma alterou a hierarquia normativa em que Constituição, legislação, convenções coletivas e acordos eram pisos progressivos de direito. Desde então, a Constituição passou a ser um teto, a legislação uma referência de direitos que podem ser reduzidos pelas convenções; os acordos podem diminuir garantias previstas em lei e em convenção coletiva, o indivíduo pode abrir mão de muito do que foi conquistado coletivamente. Os trabalhadores e os sindicatos “ganharam o livre direito” para reduzir salários e garantias, flexibilizar contratos, ampliar ou reduzir jornada, quitar definitivamente, na presença coercitiva do empregador, os direitos. O acesso dos trabalhadores à Justiça foi limitado. As empresas passaram a ter inúmeros instrumentos de maior garantia, proteção e liberdade jurídica para ajustar o custo do trabalho.
Fazem parte dessas mudanças a possibilidade de novos tipos de contratos de trabalho (tempo parcial, trabalho temporário, intermitente, autônomo exclusivo, terceirizado sem limite, teletrabalho, etc.), que permitem ajustar o volume de trabalho à produção no dia, na semana, no mês, ao longo do ano. Esses contratos podem ter ampla flexibilização em termos de jornada (duração, intervalos, férias, banco de horas, etc.). As definições do que é salário são alteradas e os valores podem ser reduzidos, assim como outras obrigações legais. A demissão é facilitada, inclusive a coletiva, com diversas formas de quitação definitiva de débitos trabalhistas.
O poder de negociação dos sindicatos é fragilizado com o “novo poder” de reduzir direitos, a interposição de comissões de representação dos trabalhadores, nas quais é proibida a participação sindical, ou com a autonomia do indivíduo para negociar diretamente. Essas medidas quebram o papel sindical de escudo coletivo e protetor. Como já ocorre em outros países que adotam mecanismos semelhantes, os trabalhadores estão sendo incentivados e estimulados, por meio de inúmeras práticas antissindicais e de submissão patronal, a não apoiar ou financiar os sindicatos. Muitos são submetidos ao poder das empresas, pressionados para aceitar acordos espúrios diante do medo de perder o emprego.
A Justiça do Trabalho, que agora é paga, terá sua tarefa reduzida à análise formal dos pleitos. A Lei criou uma tabela que precifica o ônus da empresa até, no máximo, 50 vezes o salário do trabalhador!
Foram mais de 300 alterações na legislação trabalhista, que operam um verdadeiro ataque aos trabalhadores. O Brasil se integrou ao rol de países que reformaram a legislação laboral e sindical para oferecer às empresas a flexibilidade para ajustar o tamanho e o custo da força de trabalho sem resistência sindical.
Outras iniciativas foram tomadas, como a Lei 13.429/2017 que autorizou a terceirização de forma ilimitada no setor privado e público. A Reforma da Previdência Social foi aprovada em 2019 com severos e múltiplos impactos que impedem ou dificultam o acesso à previdência social, arrocham benefícios e pensões. Iniciativas com o mesmo objetivo acabaram caducando como, por exemplo, a Medida Provisória 905/2019 que fazia inúmeras alterações trabalhistas e sindicais e a MP 873, que feria de morte o financiamento sindical e, mesmo caducando, deixou um legado de destruição sindical. Há várias outras iniciativas tomadas pelo Governo, por meio de Medida Provisória ou Projeto de Lei, que estão em debate no Congresso, com impactos sobre condições de trabalho, jornada, direitos laborais e sindicais.
Especificamente em relação ao financiamento sindical, cabe mencionar que duas das principais fontes, que representam mais de 70% da receita corrente das entidades, foram bloqueadas ou limitadas. A primeira é a contribuição sindical (desconto anual de um dia de trabalho de todos os empregados), destinada à manutenção de sindicatos, federações, confederações e Centrais Sindicais e ao Ministério do Trabalho. Tem caráter constitucional obrigatório, mas com a atual legislação, passou a ser facultativa, situação que está sendo questionada na Justiça. Ao tornar voluntária essa contribuição, os dados de 2018 a 2020 indicam queda superior a 90%.
A outra receita importante é a contribuição assistencial, feita pelos trabalhadores às entidades sindicais que os representam, por ocasião das negociações coletivas de trabalho. O Supremo Tribunal Federal tem atuado incisivamente para proibir o desconto dessa contribuição dos trabalhadores não associados aos sindicatos, apesar de garantir que todos têm o direito de acessar aos direitos definidos pelas convenções e acordos coletivos. O “trabalhador carona”, a “malandragem”, a tão falada lei de Gerson que incentiva “levar vantagem em tudo”, vem orientando as inciativas do Executivo, as decisões legislativas e judiciais, favorecendo e, de certa forma incentivando, esse tipo de prática.
O objetivo claro é quebrar o movimento sindical ou, no mínimo, restringir e controlar seu poder. Se não fosse esse o propósito, e havendo necessidade de mudança, a legislação asseguraria regras adequadas para um financiamento condizente com as atribuições sindicais, mecanismos para um processo de transição, valorizaria a negociação e modernizaria o sistema de relações de trabalho e não incentivaria práticas antissindicais.
- O debate sobre a reforma sindical e cenários para a reestruturação
Para além das mudanças no mundo do trabalho[1], que passam cada vez mais a exigir transformações no sistema sindical, há também iniciativas institucionais que recolocam o tema da reforma sindical em debate junto ao Poder Executivo e, principalmente, junto ao Legislativo, mobilizando trabalhadores e empregadores para essa empreitada.
No âmbito do Poder Executivo, o governo instituiu o Conselho Nacional do Trabalho em 2019, órgão tripartite (governo, empregadores e trabalhadores) para debater questões sindicais e trabalhistas. O governo afirma que enviará, mas não indica em qual prazo, um Projeto de reforma sindical no qual proporá́ a instituição dos princípios da liberdade sindical (autonomia e não interferência do Estado nas organizações).
Por outro lado, o assunto da reforma sindical também está ativo do Congresso Nacional. São várias as inciativas de PECs (Proposta de Emenda Constitucional) que tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Mais recentemente, foi apresentada a Propostas de Emenda Constitucional – PEC 196/2019, apreciada pela CCJ – Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e encaminhada para a formação da Comissão Especial para análise de mérito. Essa Comissão Especial ainda não foi instalada[2].
O debate está em curso e para pensar o futuro do sindicalismo brasileiro devemos considerar que:
- As mudanças no mundo do trabalho estão na base do sistema produtivo brasileiro e afetam a vida dos trabalhadores de maneira radical. Criam-se novas formas de inserção ocupacional de contratação. Há o efetivo desafio de representar todos os trabalhadores.
- A atual estrutura e organização sindical brasileira não consegue responder a essa nova dinâmica e organização do mundo do trabalho.
- Há um esgarçamento da relação entre sindicatos e trabalhadores nesse novo mundo que precisa ser enfrentado e superado, e que foi exacerbado pelo individualismo.
- A superação será resultado de uma reestruturação sindical intencionalmente direcionada para recolocar os sindicatos no centro da vida dos trabalhadores, como seu escudo protetor e seu meio de expressão como classe unida e com projetos.
- Iniciativas tomadas pelo governo Temer e por Bolsonaro feriram de morte o sindicalismo brasileiro, pelos limites impostos para a ação sindical, pela fragilização do poder de negociação e pelo ataque que desestrutura as formas de financiamento. O definhamento do movimento sindical está em curso e precisa ser estancado, revertido por uma nova dinâmica de fortalecimento da representatividade, da agregação e da cooperação.
- Há inciativas em curso tomadas pelo Poder Executivo, Legislativo e Judiciário que consolidam e ampliam esses ataques.
- Também ocorre um processo que visa empurrar uma reforma sindical que poderá implicar em um pluralismo desagregador e pulverizado da estrutura sindical, com graves riscos de descambar para o sindicalismo por empresa.
Diante desse quadro, indica-se para o movimento sindical trabalhar estrategicamente com três cenários básicos, cada um com iguais chances de ocorrer e, por isso mesmo, com estratégias definidas para atuar em relação a todos eles.
Cenário 1 – Um sonho: a reforma sindical avança no Congresso com um modelo pactuado entre trabalhadores, empregadores e parlamentares, e institui um sistema de transição sindical para um regime de liberdade com regras que favorecem a agregação, a representatividade, a negociação, a solidariedade e a cooperação. Para esse cenário será preciso um Plano que combine elaboração propositiva para o sistema sindical, debate na base, construção propositiva, inclusive com o setor patronal; articulação com os parlamentares, bancadas de partidos e comissões; debate público orientado para o convencimento; um projeto de transição pactuado que construa a reestruturação com base nas novas regras aprovadas. Um debate e projeto que reposiciona o movimento sindical como instituição essencial da nossa democracia e que constrói a sua valorização presente e futura. Cenário com baixa possibilidade até final de 2022.
Cenário 2 – Um pesadelo: a reforma sindical avança com regras que implantam um regime de pluralismo que pulveriza e fragmenta a representação, enfraquece o financiamento e concentra a negociação nas empresas. Diante desse cenário será preciso um plano de resistência buscando impedir o trâmite desse tipo de proposta no Congresso. Se ocorrer e houver a derrota, será necessário um plano de enfretamento com projeto de reestruturação nessas bases e de reversão da pulverização e da fragmentação, etc.
Cenário 3 – A vida como ela é: nada avança no Congresso, os debates ficam enrolados ou travados, há pautas prioritárias, ou consegue-se impedir que as mudanças nefastas avancem travando-se o processo legislativo, etc. O sistema sindical fica com as regras atuais que enfraquecem o poder dos sindicatos na negociação e debilitam gravemente seu financiamento. O governo dá continuidade aos ataques pontuais que fragilizam ainda mais o poder sindical e seu financiamento, a Justiça colabora com o enfraquecimento sindical. Nesse caso, é necessário ter um plano de reestruturação ousado, de autorregulação no campo dos trabalhadores em termos de organização e representação, de corregulação capital e trabalho para o sistema de negociação e que deve incluir o financiamento. Para esse plano é preciso ousar construir um “pacto sindical pela mudança”, no qual durante cinco anos todo o movimento sindical estará focado em construir a reestruturação sindical, sem criar nenhum novo sindicato, sem formar oposições, favorecendo fusões e agregações, etc. A unidade na diferença como visão prática e estratégica de transformação.
[1] Foge ao escopo deste texto o conjunto de transformações de ordem tecnológica, patrimonial e organizacional em curso na atual fase do sistema capitalista mundial.
[2] Até março/21 essa Comissão não havia sido instalada. Os trabalhos dessa Comissão duram de 10 a 40 sessões (em torno de 3 meses), cujo Relatório, quando aprovado na Comissão Especial, segue para duas votações do Plenário da Câmara dos Deputados, seguindo depois para trâmite semelhante no Senado Federal.
[1] Sociólogo, assessor do Fórum das Centrais Sindicais e consultor sindical. Foi técnico do DIEESE de 1984 a 2020 e Diretor Técnico de 2004-2020. Foi membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – CEDES, do Conselho da Sociedade Civil do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, do Conselho do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos – CGEE; é membro do Conselho de Altos Estudos do TCU.
[1] Publicado no site DMT, https://www.dmtemdebate.com.br/caminhos-para-os-sindicatos-construirem-seu-futuro-em-um-mundo-do-trabalho-em-mudanca/