José Álvaro de Lima Cardoso
(Economista, 21.04.2021)
No debate sobre as contrarreformas em geral, o primeiro aspecto que
jamais deveria ser esquecido, é que todas elas (previdenciária, trabalhista,
Estado), incluindo a PEC 32/2020, vieram na esteira de um crime de grandes
proporções contra o Brasil, que foi o golpe de Estado, em curso. Esse golpe
teve como momento crucial o impeachment da presidente Dilma Roussef em
2016, mas não se limita a ele. O resgate do golpe não é nenhum capricho ou
questão moral: é que o golpe está transformando profundamente a sociedade
brasileira – para pior – por isso deve ser resgatado. Resgatar o fato é
fundamental para a precisão da análise e, consequentemente, para as ações a
serem encaminhadas.
A PEC 32/2020 vem num conjunto de medidas encaminhadas pelo menos
desde o golpe de 2016. O aspecto central da referida PEC é que ela revê uma
concepção de Estado, mais ou menos aceita, de que alguns direitos são
constitucionais e devem ser providos pelo Estado de qualquer maneira. A partir
das medidas da reforma administrativa, aquilo que a gente conhece como
direito constitucional desde, pelo menos 1988, a reforma administrativa quer
transformar, na prática, em mera “prestação de serviços”. Como outra face da
mesma moeda, esta concepção classifica os direitos do servidor, como
“privilégios”. Nesse contexto, a estabilidade no emprego é “o cúmulo da
regalia”, “servidores não fazem nada e recebem salários milionários”, etc.
Segundo essa concepção de Estado, é necessário esmagar salários e direitos
para melhorar a eficiência do Estado.
A operação de rápido desmonte dos serviços públicos, como os golpistas
vêm fazendo, requer total ausência de transparência e debate. Se as medidas
são aprovadas a toque de caixa no Congresso Nacional, sem aprofundamento
do debate e sem a população saber direito o que está acontecendo, o lado
mais poderoso aprova a versão que quer. Por isso o governo federal, no intuito
de aprovar a reforma administrativa, mente muito, mente descaradamente.
Mentir, aliás, parece ser uma especialidade dos promotores do golpe.
Como uma grande parte da população vive na miséria, e a classe média
está empobrecendo rapidamente, qualquer comparação com o setor privado,
torna os direitos do funcionalismo público, um rosário de “privilégios”. Um
professor que ganha R$ 4.500,00 passa a ter seu salário considerado
verdadeira “fortuna”. Um gari de empresa pública, com 15 anos de casa, que
ganha R$ 4.000,00 é um autêntico “marajá”. A mídia que divulga essas coisas
não menciona, claro, que o salário mínimo necessário para uma família de 4
pessoas, calculado pelo DIEESE é R$ 5.315,74, valor correspondente a 4,83
vezes o mínimo vigente no país.
Dentre as várias mentiras que se conta, no debate sobre Estado nacional,
uma é de que a privatização irá resolver o problema fiscal do governo. Mas o
fato é que não há saída para o problema financeiro no Brasil, se não se resolve
o problema da dívida pública. O governo arrecadou com privatizações no ano
passado, menos de R$ 100 bilhões, torrando ativos fundamentais para a
população brasileira. Mas só os gastos com o pagamento de juros e
amortizações da dívida pública chegaram à cifra impressionante de R$ 1.381
trilhão.
O conjunto das medidas a partir do golpe, desmonta o Estado tal qual hoje o
conhecemos. As medidas principais são:
1.PEC do teto ainda em 2016 (EC 95), que congelou gastos primários do
governo federal. Só se pode corrigir os gastos pela inflação do ano anterior
Continuou com a terceirização ilimitada, aprovada no governo Temer (março
de 2017). Medida que acabou com a terceirização apenas nas atividades meio
e abriu a possibilidade de terceirizar tudo. Uma escola, portanto, passou a
poder terceirizar professores, ao invés de contratar diretamente;
3.Passa pela contrarreforma trabalhista (aprovada em julho de 2017) que, além
de rebaixar os direitos de toda a classe, estavam preparando para medidas
específicas no setor público);
4.Segue com a contrarreforma da previdência (aprovada em novembro de
2019) que dificultou o acesso ao direito e diminuiu o valor das aposentadorias;
5.Continua com as privatizações, alimentada pela mesma concepção de
Estado mínimo. Por exemplo, o Banco do Brasil, que estão preparando para
privatizar, irá fechar neste ano, 361 unidades e demitir 5 mil funcionários;
6.Segue com a PEC 32/2020 e outras medidas.
Na lista acima foram lembradas algumas das medidas principais. Mas há
muitas pequenas medidas complementares, com menor visibilidade, que a
sociedade não consegue nem acompanhar. Com esse conjunto de medidas
principais, e outras complementares, a intenção é mudar radicalmente a
relação do Estado com a sociedade. Acabar com o pouco que tem de Estado
de bem-estar social no país.
Exemplo de medida aparentemente sem importância para o setor público é
o fim da política de ganhos reais do salário mínimo. O servidor público pode
pensar “isso nada tem a ver comigo”. Mas essa medida afeta toda as relações
econômicas. O salário mínimo é referência de toda a economia, inclusive para
o setor público, especialmente prefeituras. O salário mínimo é um preço que
influencia a distribuição de renda como um todo, exercendo o papel de alicerce
salarial da economia.
Bolsonaro estava falando sério, quando afirmou, em março de 2019, numa
reunião na sede da CIA: (…). O Brasil não é um terreno aberto onde nós
pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir
muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer”