Luiz Carlos Heleno
Um pouco antes das nove horas da manhã, Dr Juvenal, advogado já
aposentado dos tribunais trabalhistas, passa diante da pequena mercearia que fica no
caminho de seu exercício, duas vezes por semana, até a Igrejinha do fim da rua. Toda
vez que passa ali, um senhor de uns setenta anos lhe diz bom dia, e sem cessar ou
diminuir as passadas, o advogado corresponde ao cumprimento. Ontem foi um pouco
diferente, ele me contou. Além do cumprimento, aquele senhor lhe perguntou se ele
não concordava que os Chineses teriam que pagar pelo estrago que fizeram ao mundo
criando o coronavírus lá no país deles. Ainda caminhando, Dr. Juvenal não contraargumentou em relação ao assunto, já que discordava totalmente daquela fala
reproduzida de alguma fakenew ou de alguém que tenha sobre aquele senhor total
influência na leitura que ele faz do mundo. Mas seguindo seu caminho, e sem a
mínima vontade de participar daquela conversa, o advogado brincou com aquele
senhor, de quem não sabia nem o nome, ironizando que o difícil seria achar alguém
que fosse até a China cobrar o preço da conta. Depois seguiu rindo consigo mesmo
caminho adiante.
Refletiu, durante o percurso, que o comportamento daquele senhor está
disseminado por todo canto onde a gente anda, ou por onde ainda é possível andar,
com um mínimo de segurança em relação ao risco de contágio na pandemia. Na altura
da linha férrea alguns meninos chutavam, despreocupados, uma bola de plástico já
bem surrada. A leveza dos meninos o sequestrou por uns minutos da realidade às
vezes perversa. Depois retomou os passos pensando o que pensavam da vida
pessoas como aquele senhor da porta da mercearia. Aquele comportamento ou
pensamento habita com alta frequência nossos quintais e/ou salas de estar de nossas
casas (e tomara que, pelo menos, com certo uso de máscaras).
Considerou pelo caminho que, para chegar até ali naquele senhor e se
transformar em maneira daquele homem pensar o mundo, aquela forma de
comportamento ou atitude já transitara pelos ecrãs das telas de TVs, computadores,
celulares, ou descera dos púlpitos, religiosos ou não, em forma de palavras com
pretensão e peso absolutos, ou ainda emergira de forma agressiva de algum lugar da
mente, onde as pessoas guardam mesquinhamente o que pensam do/a outro/a para
além de seus umbigos – a desventura de viver uma vida egoísta projetando no outro
um inimigo em potencial. Bateu-lhe uma pequena angústia quando se perguntou no
que vai dar tudo isso. Resignou-se em achar que a angústia prevalecerá sobre
qualquer resposta, e que relativizar as falas e atitudes similares talvez fosse uma
questão de sobrevivência, mas também um contracenso, lhe pareceu, já que aquele
comportamento afetará de certa forma a própria vida nos aspectos da sociabilidade e
da convivência pacífica entre semelhantes.
Quando retornou da caminhada pelo mesmo trajeto, e se aproximou para
comprar uma garrafa de água, o assunto na porta da mercearia já era outro. Um
senhor, que certamente era o proprietário, afirmava ao seu interlocutor que adquirira
um revolver para se defender da bandidagem que crescia no bairro. No meio da fala,
acentuou que mataria qualquer um que tentasse roubar uma banana de seu
estabelecimento. De forma pacífica e quase professoral, Dr. Juvenal perguntou ao
proprietário se não haveria uma maneira menos violenta para resolver o furto. O outro
lhe respondeu: “Não tem, meu senhor: é a sua vida ou a do bandido”.
Dr Juvenal pagou e seguiu caminho. Como não era leigo em matéria de leis,
logo fez a relação da atitude do dono da mercearia e de uma proposta que pretendia
ampliar no país o conceito de “excludente de ilicitude”, com o aval, à época, do então
Ministro da Justiça, Sérgio Moro. Seria, em poucas palavras, a ampliação da liberação
para matar, principalmente para policiais em serviço, sob o pretexto da legítima
defesa, ou em defesa da ordem, sem ser penalizado. Lembrou-se de uma entrevista
que lera semanas atrás, em que um professor de direito penal explicava que a
excludente é uma situação que autoriza uma pessoa a atacar ou agredir outra, ou
praticar uma conduta que, em tese, seria crime. Na mesma entrevista, o professor
citou um exemplo do que seria a excludente no sentido da necessidade: – “se eu estou
passando na rua e vejo uma criança dentro de um carro trancado, e ela está
sufocando, e a única maneira de abrir o carro é quebrar o vidro, a lei autoriza que eu
pratique esse ato. Inicialmente, quebrar o vidro seria crime, mas nesse caso, estou
autorizado”.
Não custou ao Dr Juvenal fazer a relação entre o episódio da mercearia e o
tamanho do estrago que seria se o país aprovasse a tal ampliação do conceito da
“excludente de ilicitude” para fins de estabelecer a ordem ou legítima defesa. Já há
uma mortandade indiscriminada no Brasil. Dr. Eli, um amigo de longa data lhe disse
que se a proposta apresentada pelo governo fosse aprovada com nova
regulamentação ampliada, poderia receber um novo batismo: a “explicitude da
excludente de ilicitude”. Dr Juvenal riu da sugestão, embora soubesse que a realidade
é de morte, e que as forças legítimas continuarão atirando do chão ou do alto dos
helicópteros sobre comunidades vulneráveis, às vezes acompanhadas de uma
autoridade executiva, e que um grande número de pessoas civis também estará
determinado e, se preciso, disposto a atirar para matar em defesa de suas posses
(casa, carro, bicicleta, mercearia, tênis) alegando legítima defesa. Nem que seja
legítima defesa da banana.
*As situações são reais, as personagens são fictícias