Martinha Vieira
Parte I
Perco a conta de quantas vezes fui alvo dessa pergunta. Pegadinha? Não. Apenas questionamento de um pequeno garoto. Pois é, sabe aquela mania que muita gente tem de deixar pra amanhã? Fuga ou não, por qualquer motivo, lá vem a saída estratégica de prometer pra amanhã (alguns gostam daquela palavrinha feia: “é a procrastinação”).
O fato é que, numa dessas promessas, fui surpreendida pela perguntinha que dá título a esse texto. Acontece que o prometido pra amanhã era interesse imediato de uma criança de 3 anos, no caso, meu filho. E foi aí que ele lascou pela primeira vez a pergunta que nunca mais parou de me inquietar. Não tive dúvidas e respondi que “não, hoje não é amanhã. Amanhã é outro dia. Primeiro vai ficar noite, você vai dormir e quando acordar e, já for dia, já é amanhã.” Aí é que mora o problema: daí não seria mais amanhã, seria hoje. E agora? Como sair dessa? Nunca mais parei de filosofar em torno dessa pergunta, que muitas vezes mais me foi feita pelo mesmo sujeitinho impiedoso e apressado.
A pressa sobre a promessa, a pressa de crescer, a pressa de chegar (“a gente já chegou?”). É assim que uma criança encara o tempo que, de tão relativo, nos aproxima ou nos afasta do amanhã. Parece que são os objetivos que plantamos para o amanhã que fazem girar a roda do tempo, lenta ou apressadamente. E assim chegamos a cada amanhã prometido, e é fácil continuar prometendo, pois o amanhã de ontem se tornou hoje. Ou seja, ele só foi amanhã enquanto ontem foi hoje. O amanhã de ontem não existe mais, pois hoje se tornou referencial de um novo amanhã. Agora veja se entende o porquê dessa perguntinha inocente ter me tirado a paz.
Li, certa vez, um poema intitulado “Adiamento”, de Álvaro de Campos (um dos heterônimos de Fernando Pessoa), cujos versos fomentaram ainda mais as reflexões anteriores. Ele dizia assim: “Hoje quero preparar-me, /Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte…/Ele é que é decisivo.” E continuava: […] Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?/ Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã, /Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo…/ Antes, não…” – ai…ai… agora apareceu o depois de amanhã pra complicar a minha situação.
Enfim, poderia simplificar as coisas e, aceitando a linearidade entre passado, presente e futuro, ficar em paz. As respostas prontas pacificam, mas acomodam, tiram a graça do diferencial humano, que é se pôr a pensar, a indagar, a passar a vida buscando respostas e percebendo que elas são relativas, como o tempo. Passado, presente e futuro se fundem numa confusão de bilhões de anos necessários para transformar a vida de ontem na de hoje, que será a de amanhã. E aí está a grande beleza de tudo: a interligação da vida pelo tempo. É o dar-se conta disso que elimina aquela sensação desagradável de que o tempo não tem volta e de que tudo ficou para trás; de que passamos a vida acreditando que o espetáculo seria apenas amanhã, mas que nos esquecemos de comprar os bilhetes.
Se somos fruto de longínquas explosões estelares, carregamos um passado e um profundo compromisso com o futuro, que depende da vida de hoje. E a vida de hoje se faz de pequenos detalhes, momentos, expectativas sobre o amanhã e lutas para realizá-las. Tantos amanhãs se diluíram e viraram hoje? Então já temos um ontem mais extenso, de tantos hojes que ficaram pra trás?
Prometemos o amanhã todos os dias e, de repente, nos damos conta que… ele chegou. A misteriosa lente do tempo que enruga a pele e faz rever a vida, nos faz também perceber o valor e o significado de cada minuto vivido. Assim como a compreensão de uma criança sobre o tempo se torna mais complexa. Depois de muitas vezes feita a mim a tal pergunta, percebi que ela foi rareando, e com isso parecia que a criança ia compreendendo a relatividade do tempo. Ou já não seria mais uma criança? E foi quando a criança deixou de perguntar que percebi que não havia mais criança. Por isso, termino citando Caetano Veloso, cujos versos, que antes me pareciam apenas um jogo sonoro de palavras, se encheram de significado. Sim, depois de ver o tempo transformando a criança em quase adulto, junto com tantas outras compreensões que se fizeram ou se transformaram, assim também esses versos: “és um senhor tão bonito/ Quanto a cara do meu filho/ Tempo tempo tempo tempo…
Agora posso responder à pergunta inicial: sim, hoje já é amanhã.
(Texto de Martinha Vieira, escrito e publicado em março de 2012)
Parte II
Depois de aproximadamente três mil amanhãs de ontem terem se tornado hoje e ontem, sucessivamente, deu vontade de continuar o assunto. Simplesmente porque hoje, com 25 anos e muita barba no rosto, o autor da pergunta de ontem a tem nos olhos mais uma vez. Assim também prováveis milhões ou bilhões de jovens compartilhem a mesma sensação do amanhã prometido escorrendo entre os dedos, em meio ao álcool gel e aos impactos de uma crise sanitária mundial que fez arrebentar, como sempre, a corda do lado mais frágil. E mais ainda, evidenciando quantas e quais são as fragilidades do nosso mundo e do nosso país, da saúde pública à economia e à política, nas questões sociais, religiosas, humanas (ou desumanas) e ambientais. Não só entre os jovens, essa parece ser a pergunta que paira no inconsciente coletivo, como se todos nós voltássemos àquela parte inocentemente esperançosa, ansiosa e afobada das crianças. Queremos o amanhã desesperadamente, como se o hoje se eternizasse no vazio da espera, como se aquele bonito senhor, o tempo, da canção do Caetano Veloso, fosse o grande carcereiro da vida numa sequência de hojes com amanhãs ao longe, de hojes que se tornam ontem sem ter sido amanhã.
Acostumamos a ver a vida pela ótica da perda, e contabilizando o tempo perdido ignoramos o tempo ganho e o desperdiçamos. A expectativa do êxtase em cada momento da vida nos dá sempre a sensação do tédio e do vazio perante a normalidade, a mesma que queremos de volta. Pedimos ao tempo mais tempo, pedimos ao tempo que nos espere na próxima curva do caminho, mas quem tem o mapa? Esperamos a cura, o antídoto, o milagre, para que tudo volte a ser como era, pra retomarmos o caminho, mas quando o amanhã chegar e tudo voltar ao normal o que mais precisamos curar? Talvez a percepção de que o amanhã não depende apenas da passagem do tempo, mas dos caminhos que vamos tecendo ao cruzar o tempo nesse mundo e dos rastros deixamos por onde passamos.
No país do futebol, 2020 esgota os 45 minutos do segundo tempo com a desagradável sensação de gol contra. A esperança de um novo jogo vitorioso em 2021 é o pedido que fazemos ao tempo, como se fosse ele o mágico que conserta todos os nossos erros, que pode zerar tudo e nos fazer recomeçar. Se for de fato o que queremos, um recomeço para corrigir
os erros, uma virada de ano pode ser um belo símbolo da nossa negociação com o tempo. “O bom do caminho é haver volta. Para ida sem vinda basta o tempo.” (Mia Couto, em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra). Se o tempo não volta, o caminho, esse sim pode ser revisitado, revisado, revisto: em quais pontos plantamos flores e onde colocamos pedras para os próximos passantes? Ou onde deixamos armadilhas e campos minados para impedir que caminhos novos e diferentes de nossas crenças sejam criados? O caminhar carece de retomada constante. Talvez assim que devamos gastar o nosso hoje, para não sabotar o amanhã. Rever a vida sem medo da dor do espelho pode ser o ponto de equilíbrio para aliviar a ansiedade e refazer o caminho. Então o prazer será legítimo e o movimento preciso, quando o tempo for propício, quando dermos sentido ao nosso tempo nesse mundo, “De modo que o meu espírito/Ganhe um brilho definido/ Tempo, tempo, tempo, tempo/ E eu espalhe benefícios”.
(Martinha Vieira, em dezembro de 2020)
No link a seguir Caetano canta com seus filhos a sua “Oração ao Tempo”.
Oração ao tempo
(Caetano Veloso)
És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo, tempo, tempo, tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo, tempo, tempo, tempo
Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Tempo, tempo, tempo, tempo
Entro em um acordo contigo
Tempo, tempo, tempo, tempo
Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo, tempo, tempo, tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo, tempo, tempo, tempo
Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo, tempo, tempo, tempo
Ouve bem o que te digo
Tempo, tempo, tempo, tempo
Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo, tempo, tempo, tempo
Quando o tempo for propício
Tempo, tempo, tempo, tempo
De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo, tempo, tempo, tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo, tempo, tempo, tempo
O que usaremos pra isso
Fique guardado em sigilo
Tempo, tempo, tempo, tempo
Apenas contigo e migo
Tempo, tempo, tempo, tempo
E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo, tempo, tempo, tempo
Não serei nem terás sido
Tempo, tempo, tempo, tempo
Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo, tempo, tempo, tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo, tempo, tempo, tempo
Portanto, peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Tempo, tempo, tempo, tempo
Nas rimas do meu estilo
Tempo, tempo, tempo, tempo
No calor de nossa cumplicidade em concepção de mundo, o amanhã nascerá com a soma das intensidades do hoje. O nosso Zeitgeist de humanidades. Teu texto vem com leveza fuçar nosso olhar sobre o tempo.
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