Lamento natalino

Adalberto Fávero (Beto, 12/2020)*

“O menino morreu, cubramos nossas caras com terra branca.

Quatro filhos pari na choça de meu esposo.

Somente o quarto vive.

Quisera chorar, mas nesta aldeia está proibida a tristeza.”

(Lamento Azante)

Há que se elevar um lamento pela terra afligida, um triste cantar em nosso país, pois todas as vidas invisíveis, pobres, vulnerabilizadas, negras, femininas e das minorias marginalizadas importam; tantas vidas importam! Importa a dor de cada mãe e cada pai, de cada filho sem mãe e sem pai, de cada mulher e homem que perderam seus companheiros; de cada emprego que desapareceu, de cada demissão de injusta causa, esta pandemia; de cada riso de desdém pela dor do outro. Há que se levantar um lamento pelas desculpas e justificativas das dores causadas ou das providências não tomadas em nome de qualquer ideologia ou religião.

            Há que se levantar um lamento pela insensibilidade, o ódio que cresce e a reciprocidade que desvanece em nome do diabo ou de Deus. Um lamento por um Estado e pela oficialidade política, social, judiciária ou rentista que banalizam o mal e fazem com que exista uma violência sistêmica exercida por pessoas banais. Um lamento pelo ódio que cresce, pois odiar coletivamente pega. Estará em nosso DNA ser Calígula ou Galileu?

Este é um ano triste, não devia (ou não deve) ter natal!

Duzentas mil mortes oficiais não é pouco! E fazem pouco, pouco caso, pouco esforço, pouca dor solidária, pouca esperança, pouca vacina e muito descaso da ciência e da medicina.Os responsáveis tem nome, mas fazem quase tudo em nome da pátria ou de deus!

Há mortes demais, desempregos demais e desesperança sobrando. Não creio que haja nascimentos fáceis e reuniões prazerosas sem que caiam as máscaras, sob as máscaras do vírus da doença que mata. Há outros sintomas e vírus diversos, destruindo a solidariedade e as reciprocidades, rindo da dor e do outro, raivosa da crença alheia e violenta com a alteridade necessária.

Povos antigos da América diziam que haviam habitantes felizes dos subúrbios do paraíso terrestre que chamavam o arco-íris de serpente, de colares e mar de cima ao céus; o raio era o esplendor da chuva, a alma o sol do peito; a coruja era o amor da noite escura e para dizer “perdoo” diziam esqueço. Estará distante e esquecido este tempo e este sonho?

Parecemos perdidos em noite escura e aquela reunião de família, de repente, desmontou-se com argumentos sanitários de não proximidade, não à aglomeração ou prevenção ou sob uma justificativa engasgada, ainda que verdadeira, de cada qual ficar em seu canto, às vezes em sensação que já vinha crescendo, sob o manto cinza do não dito.

Este ano não devia ter natal! Há muito desprezo da dor alheia, muitas razões para favorecer quem causa ou ri do sofrimento e muita morte que não é contada ou cantada porque não cabe na estatística do esquecimento. Costuma-se dizer que o homem é lobo do homem, o que se constitui uma injúria contra os lobos. Eles não se alimentam de outro lobo e nem criam genocídio na alcateia.

Este ano não devia ter natal! Porque no lugar de resolver a desigualdade, tem se buscado construir muros para separar e preservar os que possuem mais, como imaturos e insensíveis portadores da história e do futuro, Continua-se pedindo que se engaiolem o vento!

É tempo de tristear e musicar? Há esperança de algum nascimento, sobre os cadáveres de tantos mortos? Não é hora de tomarmos o partido dos desgraçados? Não se tem um soluço sofrido com as mortes dos Júlios, Santanas, Marias e Joãos, os ninguéns dos números estampados nos jornais e redes sociais? Faz sentido inventar neve no verão para lembrar apenas um velhinho de barba branca, há tempos vestido de vermelho pela coca-cola? Tem lógica celebrar a vida no meio de tantas mortes e descasos?

Este ano não devia ter natal??!! Por que enquanto vamos amadurecendo ou envelhecendo e nossos corpos acompanham travessos nossos desejos, não seria bom saber que nossa mente viaja sem passagem? É preciso procurar pegadas das memórias perdidas, pois estamos num momento da história, onde os pássaros brigam contra a privatização dos céus que impedem seus voos e cada vez existe mais náufragos que navegantes. A história oficial tem sido uma dama de roupas rosadas que glorifica aqueles que vencem, apenas os vencedores, e tem amnésia dos vencidos.

Não deveria ter natal este ano?! Há saudades de se encontrar nos bares e cafés para sentir calor, poder abraçar e ser abraçado, poder chorar e rir sem ser censurado; não ver mais gente chorando por alguém que partiu e nem se dizendo triste, pois tristeza é não ter por quem chorar; expulsar o ódio, a insensatez e o descaso que teima em tomar conta de tantos; que mata e violenta a tantas mulheres dentro de casa! A terra está doente de ódio, injustiça e herbicidas!

Este ano, precisa ter natal!!? Porque precisamos de esperança. Para que venha um tempo em que brilhem as gentes dançadeiras, os pássaros musiqueiros, as flores das ruas e os bons odores. Para que se reviva a paz e a justiça nos recantos de toda a terra; não se fale mais de morte sem compaixão e sim de ressureição e insurreição.

Então não haverá mais sapatos solitários, só em pares; só roupas de vestir e desvestir com alegria e desejo; relógios que não marquem mais as horas sofridas, apenas as horas alegres com o outro; os outros sempre serão gente e iguais, não importando o gênero, a cor, a raça ou riqueza; haverá amigos e amantes, não inimigos e ódios deselegantes…gigantes!

Este ano precisa ter natal!!?? Aí sim, seria uma festa! Todos iriam rir com a ocasião alvissareira, porque nem todos sabem ler, mas todos sabem rir e merecem rir de felicidade; porque não se pode achar que exista irmandade entre civilização e barbárie, embora a barbárie cresça como ópio cultivado por homens de bem…nada bem!

  Estes anos cinzas precisam ter nascimentos!!!?? Por isso sonho com o dia em que choverá para cima, a galinha comerá a raposa e o pássaro expulsará o caçador; os livros vencerão os inquisidores que os queimam; as mulheres e os homens serão iguais; a democracia não terá mais donos; a alegria será de todos e a paz será fruto da justiça e de um mundo igual.

Porque não há assunto mais sério que o riso e o cantar com amigos, transbordando felicidade! Porque teremos aprendido que não basta se compadecer do outro, é necessário colocar-se no lugar do outro. Só então há nascimentos!

                                  

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