Luiz Carlos Heleno*
“… a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras”. (CALVINO. Ítalo. As cidades invisíveis. Biblioteca Folha. Pg 7)

O lugar de onde viemos têm olhos postos sobre nós para sempre. Passe o tempo que passar, curto ou longo, essa referência nos serve quase como uma guia ou uma bússola: vigia vez em sempre nossos sonhos, se manifesta através de nossas lembranças, ou dorme largada entre um despertar e outro que nos sacode.
Assim parece ser o nosso lugar – esse lugar de cada um, com suas impressões e paisagens modificadas com o tempo -, que a despeito de se parecer ou lembrar outros lugares, sempre será único. Modificado ou desaparecido, é o lugar em que habitam, simultaneamente, diversas histórias e muitas pessoas.
O olho observa e a memória de pronto desconta uma lembrança da outra, ou junta uma na outra em sequência como se reproduzisse um filme muito particular contracenando com vidas diversas. A serra ao fundo guarda a paisagem como se emoldurasse a cidade, e parado num ponto qualquer do lugar em que um dia havia uma porteira, logo ao lado há uma árvore preservada – a mesma mangueira que subíamos pra se lambuzar do fruto maduro, na Vila Cruzeiro, na cidade pequena do interior. Essa vila que ainda preserva o mesmo traçado das ruas, algumas casas antigas, e as chaminés das olarias próximas. Pode haver milhões de mangueiras no mundo inteiro, mas nenhuma delas está para nós como a pele para o osso; esta em especial me reporta para a casa que ali existia, toda habitada por vozes do passado – a avó de riso solto, o avô quase sempre sisudo, a criançada explorando cada canto do grande quintal enquanto o cheiro do almoço no fogão a lenha vinha acordar nossos apetites.
O lugar de cada um de nós que se coabitam no mesmo espaço, acodem de ser um mapa intrigado e ao mesmo tempo revelador, digitais que vamos deixando e colhendo em nossa existência. Mesmo as ruínas, e principalmente elas, estão povoadas de um vozerio perdido no tempo – não como fantasmas a nos assustar, mas como o eco de nós mesmos que não cansa de nos lembrar: “a gente é isso!”.
Num local onde há uma escola, no passado foi o primeiro campo de futebol da cidade: então são imagens de uma cidade do passado, antes de nós, e que se mistura à cidade que nos pertenceu, e elas todas se guardam para o inevitável futuro – uma simbiose de fatos, pessoas e lugares.
Uma das ruas que um dia acolheu um alegre movimento, hoje guarda um silêncio quase perturbador e um nome sugestivo – Rua das Flores. Logo ali o prédio onde funcionou o cinema com suas sessões noturnas e matinês aos domingos, todo ele transformado em depósito; o Bar dos Estudantes fechado; o comércio ali existente quase todo migrado para outros pontos da cidade. Somos salvo pela nostalgia que quase sempre é uma coisa boa.
A cidade fala por suas paredes, sussurra pela boca de seus becos, guarda cheiros e sabores em seus campos e esquinas, mantém ou revela seus segredos enquanto se modifica. Um lugar sempre manterá um diálogo entre o que parece novo e tudo aquilo que parece não mais existir – um modo de dizer que tudo que nasce traz em si vestígios do já existido. Cada lugar é um pouco isso; essa a nossa referência – quase um jogo que teima em esconder e revelar ao mesmo tempo.
As praças, as pontes, os riachos e ribeirões, os sítios, as igrejas, as ruas. Os caminhos que fizemos se entrecruzam por esses espaços desenhando em cada um de nós uma espécie de mapa insondável que nunca se conclui – para mais ou para menos, as pistas dos sentidos que buscamos vida afora, anos a fio. Somos nós “as cidades invisíveis” de que fala Ítalo Calvino. As construções antigas parecem nos reconhecer – é como se elas dissessem rindo: “te conheço de algum lugar!”. O diálogo é mudo, a satisfação é recíproca, o riso e a lágrima nessa hora se fazem nascidos do mesmo ato e da mesma substância: o abraço de todos os tempos!
O trem já não passa pela cidade, mas sua presença é mais que viva nos trilhos abandonados e nos dormentes apodrecidos. Não custa rememorar o apito do guarda da estação, e o trem saindo em direção ao sul levando com ele pessoas com suas expectativas rumo às cidades de Ponta Grossa ou Curitiba. Frustrações e realizações povoarão muitas mentes mais tarde. Os pomares a beira da estrada, os campos, a nossa ideia de mundo que por muitas vezes não alcançava quase nenhum horizonte para além da cidade vizinha.
A cidade será sempre ela mesma a soma de todos nós, e tudo o que somos e fazemos. Ela comporta nossos modos, nossos medos e escolhas, e cada um elege as amizades e convivas que bem quer; cada qual elege seus caminhos de predileção, os locais preferidos, as práticas com o que melhor se identificam. O pulsar de todas essas coisas é a essência do que somos feitos e a certeza daquilo que em nós sempre será indefinidamente inacabado.
Ao cair da tarde me sento na varanda, e me aquieto diante da sinfonia dos grilos e dos pássaros neste fim de quarta-feira de primavera. É apenas um jeito que achei de juntar os tempos e as vidas do nosso lugar de ontem, de hoje, e de sempre. Noitinha, o apresentador de um jornal televisivo, faz a chamada para as matérias principais do dia: uma delas é sobre a aprovação de uma das vacinas de imunização contra a Covid-19. Notícia boa para a mente e para os pulmões. O apresentador nem pode brincar como brincava o locutor de uma rádio qualquer: “boa noite senhores ouvintes, ou trintas” … E a gente ria alegre da brincadeira quase boba.
*crônica escrita em 2013, revisada para publicação aqui em Pátria Distraída.
Que DELÍCIA de texto! Me encheu de saudades de saudades!!!!!
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Olá Adriana. Satisfação. Tua manifestação de alegria é prova e depoimento de que a crônica cumpre o seu papel de registro sobre o tempo e convivências. Abraço.
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