O GESTOR – Ensaio IV – Adalberto Fávero
“Quem vive no labirinto tem fome de caminhos.” (Mia Couto)
“Você coça, coça muito e coça muito bem… mas onde você coça, não coça.” ( Cacique do Chaco ao Missionário)
“Do rio que tudo arrasta se diz violento, mas ninguém diz que são violentas as margens que comprimem este mesmo rio.” (Bertold Brecht)
“O morcego pendurado num galho pelos pés, viu que um guerreiro Kayapó se inclinava sobre o manancial. Quis ser seu amigo. Deixou-se cair sobre o guerreiro e o abraçou. Como não conhecia a língua do guerreiro falou-lhe pelas mãos. As carícias do morcego arrancaram risos do guerreiro e foi rindo até desmaiar. Quando se soube na aldeia, houve fúria. Os guerreiros queimaram folhas secas na gruta dos morcegos e fecharam a entrada. Depois de muito discutir, resolveram que o riso fosse usado apenas por mulheres e crianças.” (Eduardo Galeano)
Nestes tempos estranhos, os risos e o bem-estar têm sido propriedade, mais do que nunca, apenas de alguns, mas não necessariamente das mulheres, das crianças ou de minorias que teimam em fazer do diverso um jeito de romper com a pretensa seriedade dos homens de bem. Para que a economia de mercado funcione, faz-se necessário uma política de sociedade, onde os costumes estejam ordenados na perspectiva da concorrência livre entre indivíduos. Isto deve acontecer por escolha livre do próprio indivíduo e cada qual que funcione como uma pequena empresa individual. Isto impede risos e cria um mar de lágrimas!
Fiz ou vim fazendo esta análise nos três Ensaios anteriores. No primeiro ensaio foquei na questão macro deste momento de gradual e profunda instalação do neocapitalismo e seu jeito de ser e de viver; no segundo analisei o indivíduo como um empreendedor ou empresário de si mesmo; no terceiro refleti sobre a educação e a escola neste cenário.
O presente ensaio (IV e penúltimo – o V analisará a possibilidade de uma nova utopia) buscará situar a governança e o gestor como instrumentos ou personagem chaves nesta nova engenharia das empresas e, em particular, nas escolas↔empresas. Não se trata de demonizar profissões, funções ou espaços de trabalho e atuação e sim caracterizar um lugar de trabalho constituído, gradativamente, como elemento estratégico de um jeito de fazer a “governança”.
O princípio de gestão ou governança adotado e/ou tecido nas últimas décadas passou a trabalhar, tendo como pilares, a autonomia controlada e a interiorização do protagonismo produtivo com/pelo trabalhador, medindo com avaliações constantes a sua eficiência, resultados e produção, tendo o desemprego e a precarização dos empregos e salários como pano de fundo para gestão das pessoas e das avaliações.
Em Ensaio anterior, eu lembrava que se passou a falar, por exemplo, em administração de pessoas já nas décadas dos 80/ 90 e esse processo foi se aprofundando. Pessoalmente, tive a triste experiência de participar (e talvez ser um dos responsáveis) na tessitura de um plano de carreira, o qual era reivindicação de muitos companheiros de trabalho, e vê-lo se transformar em avaliação de desempenho e eficiência produtiva. Medição de resultados.
No lugar de seguir procedimentos formais ou ordens hierárquicas, gradativamente, os trabalhadores foram submetidos às demandas, pressões e eficiência exigidas pelos clientes e/ou incentivados por gratificações por desempenho individualizado ou pela louvação pública como funcionário do mês. A competição como regra ou maneira de se portar passa a ser crescente e exigente, minando, entre outras coisas, a solidariedade de classe.
Neste contexto, “a governança é o livre enfrentamento dos interesses sem instância reguladora. Quando se joga este jogo, são sempre os interesses mais fortes que se fazem presentes. Daí porque estabelecer a governança, nada mais é, na verdade, do que a instalação de uma ditadura dos acionistas…” (Robert Dufou)
Na história pessoal ou coletiva de nossas trajetórias de vida, de trabalho ou de organização funcional, acostumamo-nos a conviver com um personagem ou com uma prática da engrenagem do sistema: a burocracia e o burocrata. “O burocrata é o homem de madeira, nascido por engano dos deuses, que o fizeram sem sangue, sem alento e nem desalento, e sem nenhuma palavra a dizer… Tem eco, mas não tem voz. Sabe transmitir ordens, não ideias. Considera qualquer dúvida uma heresia, qualquer contradição, uma traição. Confunde unidade com a uniformidade e acredita que o povo, eterno menor de idade, deve ser conduzido na base do puxão de orelha. É bastante improvável que o burocrata arrisque a vida. É absolutamente improvável que arrisque o emprego. ” (Eduardo Galeano)
Não creio que para nós trabalhadores, a citação acima designe nada além do que experimentamos no dia a dia ou na procura de serviços ou de relações de autonomia no trabalho em qualquer das instituições que atuamos, com raras e louváveis exceções, é claro.
Setenta anos depois da 2ª guerra mundial, caíram de moda, juntamente com o muro de Berlim, algumas características do velho burocrata (nem todas). Levantaram-se, no entanto, outros muros de difícil transposição. A reengenharia das empresas (tendo o gestor como uma das referências) convida a um choque de realidade que mata a justiça, joga para longe a igualdade e deixa confuso até mesmo o clássico burocrata.
A palavra gestor tem sua etmologia ligada à ideia de gesto indicador, Segundo Kanitz “gestores eram aqueles que gesticulavam, que apontavam com o dedo indicador 200 anos atrás onde o carregamento de alimentos deveria ser deixado ou estocado.Ou apontam quem deveria fazer uma tarefa.“Coloque este fardo aqui.”“Você, venha aqui.”Gestores ainda usam termos como “indicadores” de produção,apontar” uma solução, “apontamentos” de uma reunião, remanescentes da época em que administrar era basicamente apontar com o indicador a direção a seguir.Isto não é Administração do Século XXI, isto é gestão do Século XVI.Quem usa o termo Gestão está 500 anos atrasado.” Está?
Os novos “gestores” mostram-se um pouco comovidos com os discursos que chamam de “idealistas”, mas tem os pés na terra. O resto são coisas para os risos das senhoras caridosas e das crianças. Fazem da sua ação a concretização do projeto de sociedade desigual na nova pirâmide de poder estabelecido nas empresas, onde o indivíduo não é mais visto como trabalhador com classe definida e sonhos a realizar. Deve ser autônomo, flexível, disponível, empreendedor e com aderência aos objetivos de produção da empresa e às ordens de seu gestor imediato. Chama-se isto de choque de realidade e adaptação à economia mundial.
O grande desafio da empresa é mobilizar a todos os assalariados, criar adesão para a produção e impedir que sejam autodeterminados; sejam apenas executantes. Ora, as empresas e as escolas privadas, sejam estas religiosas ou não (em sua retumbante maioria), são monarquias e sua organização decisória é vertical e focada nos resultados, o que facilita a reengenharia atual, embora com coloridos e faces próprias.
Penso que o gestor atual (com louváveis resistências ao modelo), “incorpora o espírito da empresa”, fala como se ela fosse sua, usa eu e não nós. Os atuais teóricos da modernização e reengenharia empresarial dizem que os “serviços públicos” também precisam ser geridos como uma empresa e seus gestores são responsáveis por essa reestruturação. Assim, esta mentalidade vai tomando de assalto o que deveria ser público, de todos, e as conquistas democráticas do não publico e estabelecem o neogerenciamento.
No caso pedagógico, o privilégio estaria nas técnicas e não no referencial coletivo libertário, nas competências e não no conhecimento. A pedagogia de projetos e as tais metodologias ativas estão neste rol de “transformações”. Estes projetos focados e estas técnicas importadas das empresas facilitam a individualização dos interesses e desejos, retiram a autoria teórica, prática e interpessoal do professor e infantilizam as capacidades reflexivas interiorizadas, além de impedirem a união solidária entre diretores, supervisores, serviços pedagógicos, conhecimento e professores. O privilégio ficará para as reorganizações burocráticas e o diretor irá ocupando o lugar do pedagogo.
Fixam-se ideias claras: pais são consumidores que adquirem os vouchers; sancionam-se os professores tidos com o ineficazes; fixa-se nos diretores o fator de êxito escolar (alma e pedra angular de). Não mais haverá dicotomia entre o pedagógico e administrativo em virtude da concentração no gerente/diretor. É o que se tem chamado de “nova cultura de ação e governança” que valoriza o gestor no lugar do professor.
O discurso gerencial espalha-se enormemente a partir dos anos 80 e torna importante afastar o gestor do professor e “matar” aquele docente antigo e sonhador de ações libertárias, sendo a ordem “fazer mais com menos.”
Pessoalmente, vivenciei esta transição e a transformação da escola numa parte de uma corporação educativa em que, após a instalação do controle gerencial por um sistema de informática, passou-se a discursar sobre o fato de que a escola não é família, não é espaço de ser feliz e sim lugar de produção. A direção deveria afastar-se dos professores para evitar influências de amizade e poder ser neutra nas decisões.
Esta proximidade de serviços pedagógicos e professores vai passando a ser tratada como um vício problemático e com este discurso vem a defesa de que grupos de amigos, quando este afastamento não se realiza, controlam a instituição. É o estilo de gestão pós, transferido para a esfera escolar; é o caminho da analogia escola-empresa.
Trata-se, agora, de flexibilidade, qualidade total, inovação, eficiência, resultados e boa governança. Portanto, cidadania e utopias libertárias parecem falhas no processo da formação profissional-empresário na lógica do mercado. Esta transformação exige levantar cenários (diferente de contextualizar), fazer planos estratégicos com metas de alcance definido e estabelecer processos de avaliação que impliquem em cumprimento por parte de todos os “associados” envolvidos, os quais tem metas diferenciadas na produção de resultados.
É neste contexto que o gestor passou a ser estratégico e a ser preparado ou levado a falar como se fosse a empresa e sempre em primeira pessoa, sendo que para tal não pode ser muito próximo dos envolvidos na realização dos processos. O novo gestor escolar (esta é a narrativa) é chamado como líder ou chefe verdadeiro e não pode ser próximo do professor ou do conhecimento. Trata-se, insisto, de gerenciar com eficiência. Fortalecem-se os segmentos intermediários e se afastam das interações internas com os “súditos”. “Não podem ser amigos dos professores…” A ideia é que todo o corpo dirigente se junte para o gerenciamento. A autonomia docente não tem mais lugar, pois se perde na engrenagem da governança. Trata-se de retomar ou manter o controle sobre os professores e o processo pedagógico… por isso reforçam o poder intermediário para garantir o controle direto.
A neogestão, para conseguir a “adesão” ou a “participação” dos subordinados, usa palavras e expressões diferentes para o gestor ou eufemismos diversos: o poder é pilotagem; o comando é mobilização; a autoridade é suporte; dirigir é motivar e exercer liderança; impor é convencer; gerir é motivar e educar. Tudo pela eficiência e a democracia passa longe desses procedimentos e interesses.
Lembro que, em certa ocasião, a assessora de planejamento estratégico na instituição em que trabalhava, chamou-me ao lado e, após elogios protocolares, pontuou que o meu grande problema estava na proximidade muito grande com os serviços pedagógicos (escalões intermediários, essa foi a expressão usada) e dos professores e demais funcionários, A distância para manter a assertividade e liberdade de decisões era essencial e a proximidade o defeito. Em outra ocasião um novo gestor que havia assumido recentemente a função, chamou-me e observou: “onde você vai, forma grupos e junta o pessoal e isto é perigoso… comenta-se que a gestão é feita por um grupo de amigos. As coisas mudaram, talvez não tenha percebido, e não há mais lugar para este tipo de postura, etc, etc.”
Independente do meu posicionamento ou das pessoas que fizeram as observações (ainda que funcionalmente), importa perceber que um novo imaginário e um discurso diverso estava sendo implantado e que num sistema corporativo como aquele que estava sendo gestado não havia mais lugar para a pessoalidade, a proximidade e a reciprocidade entre as pessoas e funções.
Pergunto-me, após passarem alguns anos destes acontecimentos, se estes são de fato males intoleráveis nas instituições e, de modo especial, nas escolas, as quais lidam com o humano, devem formar para a reciprocidade e são espaços quase únicos da tessitura de sonhos igualitários? Será possível formar cidadãos solidários e humanamente justos sem poder vivenciar tais valores com seus pares? Se a proposta é semear ideias e esperanças não se pode vivê-las dentro das instituições? Deve-se formar cidadãos e oferecer formação política sem exercer o direito cidadão e político? É possível educar e “fazer gestão escolar” sem reciprocidades?
Acredito que neste novo modelo a resposta seja que não! Não se pode! Em nome dos resultados (no caso das escolas) o diretor ou gestor deve vigiar o “campo pedagógico e educacional.” Isto se tornou possível ao colocar o estudante no centro do sistema educacional e de seu projeto pessoal de formação. Possibilita-se que este gestor pedagógico possa defender os estudantes, inclusive das avaliações dos professores, promover atividades fora de sala e alheias ao conhecimento, o que confere a intervenção pedagógica e a possibilidade de vigiar, ver tudo, dissociadamente “das disciplinas”. O olho que tudo vê!?
Como historiador e educador não faço de nada disso um dogma religioso, nem das minhas crenças e nem das novas opções ditas de modernização, sobretudo dessas opções que apartam, diferenciam e dão supremacia pelo poder e lugar que se ocupa. Na verdade, não sei fazer nada sem gente, sem laços ou com impessoalidade, e, neste novo sistema, isso é pecado ou uma distorção imperdoável. Mesmo assim, creio ser melhor caminhar na corda bamba das análises de outrem para buscar a interdependência indispensável entre pessoalidade e profissionalidade como um equilibrista com seus inequívocos e perigos (e muitos ainda resistem neste caminho), que ancorar neste campo estéril da distância para garantir os resultados e exercício do poder. Melhor ser o outro, estar em outro lugar ou do outro lado; melhor isso que ser um ufo-gerente.
É importante pensar o conjunto desta situação, pois, apesar de tudo, a escola é um lugar único de contradições, de diversidade e de socialização; lugar profícuo às ideias e ideais libertários. Não devia caber neste espaço a discriminação, seja ela realizada por gestores, professores, estudantes ou famílias com suas opções individuais em vista da eficiência. O saber não é mais central, quando o gestor é fiscal desta eficiência; o saber é visto como chato; o professor é agente discreto e treinador; a vontade do aluno é central e as opções da gestão buscam garantir o self-service de suas demandas com vistas à integração no mercado. A preocupação é com o emprego e não com o universo intelectual, sendo a profissionalização o seu foco principal. Por isso as competências são estratégicas/referências e não a função cultural e humanizadora da escola.
Ora, este movimento da instituição escolar (como disse no ensaio anterior) e a mudança na visão e prática do gestor traduzem a transferência do sentido e da organização da empresa para a escola com as consequências desastrosas daí decorrentes…embora bem articuladas e preparadas pelos agentes determinantes do mercado. A escola passa a ser o lugar de respostas e não o espaço de aprender a fazer perguntas.
Como insisti, também em Ensaio anterior, as avaliações externas com os seus rankings oficiais ou oficiosos vieram e dão impulso a este movimento de inflexão da escola e do gestor escolar para os resultados e eficiência e as avaliações internas de desempenho facilitam a vigilância e adesão obrigatória ao gestor e aos objetivos da empresa. Não mais solidariedade coletiva e sim sinergia de equipes. Mais que isto: as avaliações de desempenho funcionam como instrumentos de homogeneização e enquadramento em vista das escolhas individuais dos consumidores e diante das demais instituições. Tal padronização favorece a quem tem possibilidade de escolha e causa exclusão dos demais que não têm essa possibilidade, além do empobrecimento pedagógico crítico e criativo.
O direito que permanece é o direito ao resmungo. Não há mais necessidade de censura explícita, pois os preços, o desemprego e os descolamentos das decisões frente à ação do cidadão comum garantem a assepsia e o funcionamento do sistema, ainda que esta situação coloque cada vez mais gente na fila da história, à espera! Prolifera o cansaço, o stress e a sensação de impotência! Cada vez mais gente doente do esquecimento, querendo o bem querer e enfartando de saudades!
Nestes tempos estranhos em que até o vento sopra errante e vagabundo, nossas casas e esperanças transbordam coisas e mistérios, Nossas chaves já não encontram mais suas portas, pois nossas análises, antes tão realistas e suficientes, vagam errantes e já não acham as respostas. Porém a sorte não ajuda a quem não ajuda a ajuda. Há que se encontrar possibilidades, dinamitar a esterilidade da impessoalidade das relações e implodir as certezas dos neo reformadores que se alvoram em profetas desse velho novo mundo. Melhor que caiam os cabelos que as ideias e ideais.
Cada vez há menos protestos. Seria porque há cada vez mais gente nos hospitais e cemitérios? Este exercício de participação política e cidadã estaria, igualmente, enterrado a sete palmos do chão? O direito ao voto não estaria fazendo acreditar que decidimos alguma coisa? O silencio já não soa como traição?
Importa refazer nossas perguntas e descolorir nossas antigas respostas, pois a democracia representativa tem iludido as maiorias e propiciado o controle cada vez mais excludente pelas minorias opulentas. Este controle e vigilância aprofundou-se em nossos países, corporações, empresas locais, funções, escolas e nas relações de trabalho. Os ditos altos ou intermediários escalões que falam em primeira pessoa pela empresa e lhe dão aparência de proximidade contribuem para esta submissão suicida. Só a democracia social direta, em todos os níveis (estado e empresas, publico e privado) poderia apontar para uma luz no final do túnel, a qual não fosse o trem vindo aniquilar as esperanças e sonhos.
Se fosse necessário “desenhar” para facilitar o entendimento acerca do lugar que a educação e a escola podem cumprir neste contexto, diria que primeiro cercou-se as terras e se disse que elas pertenciam a alguns e que os demais não tinham mais direito sobre elas; agora há o cercamento efetivo do conhecimento e da propriedade intelectual pelo controle das patentes, pelos royalts e, objetivamente, pelo esvaziamento do conhecimento e acesso escola/educação.
No caso da escola o modelo funciona assim: professores perdem seu lugar social e no trato com o conhecimento; massificação dos estudantes, marginalização dos precarizados; seleção dos mais aptos; superficialização do conhecimento; vigilância dos gestores por resultados e para a eficiência; as pessoas como clientes; centralidade nas competências para o mercado; empresas divinizadas; resultados medidos como produtos; família como consumidora; criação de sistemas ou oligopólios educacionais; instituições a serviço dos interesses particulares; escola como instrumento; empresas vistas como usuárias e formadoras de capital humano; competividade por resultados; superlotação de classes para garantir lucro; professores teatralizados como atores; sistemas informatizados facilitando o controle; direito a cultura em segundo plano; direito à educação submetido às exigências do mercado; conhecimento como mercadoria. Esta é a rica sopa oferecida; fraca em proteínas, mas vistosa em suas cores.
Cabe aos neogestores, empoderados, seguir os novos cânones do que modernamente se chama de ambientes ou campos de aprendizagem. Ao substituir a palavra conhecimento por competências associadas à nova gestão de recursos humanos e as ligar às habilidades operacionais, caracteriza-se a competência como a capacidade útil do indivíduo na rede produtiva. O novo profissional é formado ou a ele é exigido a eficiência e flexibilidade individual, substituindo a noção de qualificação social para o trabalho. As avaliações oficiais ou as empresas medem, nesta perspectiva, para a compra do capital humano. Neste sentido, mesmo os diplomas passam a segundo plano e tenderão a não serem mais referência para o emprego ou para o sentido de qualificação formativa.
Perceba-se que há um cercamento daquilo que foi coletivo para a apropriação do capital humano individual, capaz de exercer as suas competências e é neste caminho que vai a padronização pedagógica. O casamento do mercado com a escola (para cujas bodas não fomos convidados, embora muitos sejam, hoje, seus gestores de felicidade e lhes ofereçam presentes) é incestuoso por todas estas e ou outras tantas razões, mas a isto que se tem chamado de modernização e de outros apelidos escusos.
Ao fazer estas análises, não posso deixar de lembrar a história de um rei antigo das Américas e seu cozinheiro, assim contada por Galeano, este genial contador e colecionador de histórias: “Em dias antigos, o rei Mani de Yucatán entregou ao cozinheiro um animal recém-caçado e ordenou que servisse a melhor parte. O rei saboreou a língua assada. Pouco depois, o rei entregou ao cozinheiro outro animal recém-caçado e ordenou que servisse a pior parte, E outra vez houve língua no prato. O rei ficou bravo, mas o cozinheiro tinha razão.”
O melhor e o pior sempre estão próximos ou na curva de nossa loucura e das possibilidades de nossos sonhos. A língua que liberta ou aprisiona e massacra, separa ou possibilita reciprocidades desfila em nossos pratos ou é traduzida em nossas redes sociais que aproximam ou criam fake news da vida e das verdades que orientam o presente. O hoje nos cobra uma resposta histórica que determinará a vida de nossos filhos, da nossa e da próxima geração.
Desistir do presente e futuro não é opção. Sonhar e ajudar a ajuda necessária é caminho, necessidade e possibilidade. Gestar o novo, este parece ser o desafio. Já era o Conselho dos Velhos Sábios Astecas, comio lembra o mesmo autor:
‘Agora que olhas com teus olhos, percebe
Aqui, é assim: não há alegria, não há felicidade.
Aqui na terra é o lugar de muito pranto,
O lugar onde se rende o fôlego
E onde bem se concebe
O abatimento e a amargura.
Um vento de pedra sopra e se abate sobre nós.
A terra é lugar de alegria penosa
De alegria que fere.
Mas ainda que assim fosse,
Ainda que fosse verdade que só se sofre,
Ainda que fossem assim as cousas na terra,
Haverá que estar sempre com medo?
Haverá que estar sempre tremendo?
Haverá que viver sempre chorando?
Para que não andemos sempre gemendo,
Para que nunca nos sature a tristeza,
O senhor nosso nos deu
O riso, o sonho, os alimentos,
Nossa força,
O ato de amor
Que semeia gente.”
Bibliografia (Sugestões de Leituras)
Castells, M Fim de Milênio. Ed. Paz e Terra, 1999, São Paulo
Dardot, P e Laval, C. A Nova Razão do Mundo, ensaios sobre a sociedade neoliberal. Editora Boi Tempo, 2019, São Paulo
———————–Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. Editora Boi Tempo, 2017, São Paulo
———————– A Escola não é uma Empresa. Editora Boi Tempo, 2019, São Paulo
Dreifus, R, A Internacional capitalista. Editora Espaço e Tempo,1986, Rio de Janeiro
___________ Época de Perplexidades Editora Espaço e Tempo,1990, Rio de Janeiro
Dowbor, L. O Capitalismo se Desloca, novas arquiteturas sociais Edições SESC, 2020, São Paulo
Galeano, E. Memória do Fogo. L&PM Editores, 2013. Porto Alegre
————- Livro dos Abraços L&PM Editores, 2014, Porto Alegre
————- O Caçador de Histórias. L&PM Editores, 2016, Porto Alegre
Mariotti, H. As Paixões do Ego. Complexidade, Política e Solidariedade,Ed. Palas Athena, 2002, Cambuci SP
Piketty, T. O Capital, no século XXI. Ed. Intrínseca Ltda, 2014, Rio de Janeiro
Santos, M.S. e Mesquida, P. As Matilhas de Hobbes. Ed. Metodista, 2014, São Paulo
Adalberto Fávero (Beto 12/2020)