Douglas Francisco Kovaleski*
O setor saúde, apesar de ser insistentemente colocado no campo exclusivo das ciências biológicas, o que no repertório positivista ortodoxo, torna-o isento de aspectos sociais e políticos, possui, entretanto, interfaces com a complexidade da vida social no planeta. Desde questões ambientais, passando por aspectos sociológicos, políticos, antropológicos e econômicos. Interfaces essas, historicamente negadas no ensino das ciências da saúde, na grande mídia e bastante deficitárias na formação dos profissionais e das profissionais da saúde.
Essa é uma construção política que visa neutralizar um importante campo do saber e vem sendo arquitetada repetidamente por organizações internacionais que representam os interesses de fragmentação e redução da percepção em prol do controle da sociedade. Neste aspecto, há uma extensa bibliografia que aborda a intencionalidade política da Organização Mundial da Saúde, Fundações Privadas, como no passado: Fundação Kellog’s, Fundação Bill e Melinda Gates, por exemplo; atualmente quem faz essa interferência política no modo de pensar a saúde são diretamente as grandes empresas do setor privado da saúde, como planos de saúde, hospitais, seguradoras entre muitos outros.
A epidemia da COVID-19 no Brasil e no mundo explicita a forte relação que o campo da saúde coletiva estabelece com a sociabilidade. Sociabilidade como abordagem geral que engloba o conjunto de comportamentos, escolhas, imposições que interferem direta ou indiretamente na saúde humana. Nesse contexto, é de extrema importância entender esses fenômenos sociais e as relações que eles estabelecem com a saúde.
Este artigo analisa por que a epidemia de COVID-19 tem um comportamento diferenciado no Brasil, com relação a outros países. Afinal, por aqui o número de casos e de mortes assume características de um platô e não de uma curva, ou seja, o número de casos e mortes após atingir o pico não abaixa rapidamente, mas mantém-se elevado durante meses ceifando milhares de vidas de brasileiros e brasileiras, especialmente dos subalternos.
Uma primeira constatação refere-se ao tamanho do país, onde as várias curvas, ao observar estado a estado, alternam-se assumindo o formato de um platô quando calculadas em termos médios no país inteiro. O que denota, ao mesmo tempo, pouco unidade nacional em termos de gestão pública e acentuado descaso em termos de medidas preventivas, pois mesmo quando uma região ou estado atinge elevado número de casos e mortes, como foi o caso de São Paulo no início da pandemia no Brasil, as demais regiões não aplicam as medidas adequadas e capazes de reduzir a propagação da epidemia como restrição da circulação e isolamento social.
Nessa perspectiva, há que se trazer à tona as dificuldades que o país tem em fazer o chamado isolamento social, bem como de implementar uso de máscaras, álcool gel e outras medidas de higiene e cuidado. De onde emergem essas dificuldades? Será um problema de gestão local, gestão nacional, de interesses mercadológicos ou será apenas displicência das pessoas que não adotam de fato estes cuidados?
A resposta a essas perguntas será perseguida por meio da abordagem de alguns temas centrais, como:
– a determinação social da COVID-19: onde serão abordadas as formas com que a condição concreta de vida e trabalho, renda, emprego, moradia, nível de escolaridade, alimentação, transporte e lazer atuam na epidemia;
– como as desigualdades sociais interferem na epidemia: considerando as abissais desigualdades e suas consequências no cotidiano, na possibilidade de escolhas, na subjetividade, no cuidado e no autocuidado;
– como a “colonialidade da morte”, categoria cunhada por Aníbal Quijano, auxilia-nos na compreensão profunda da valorização/desvalorização da vida no Brasil.
– como o plano de poder evangélico atua na epidemia, pois aproveita-se de um momento de vulnerabilidade das pessoas, medo e incapacidade da ciência em dar uma resposta eficaz para o controle da epidemia;
– saúde do trabalhador na epidemia e o nexo causal da covid-19 enquanto acidente de trabalho.
Estes são alguns passos iniciais nesse desafio de compreender a epidemia de COVID-19 além da aparência, visando prover munição para a luta em prol da transformação da sociedade e superação do modo capitalista de produção.
DETERMINAÇÃO SOCIAL DO PROCESSO SAÚDE-DOENÇA E COVID-19:
A determinação social do processo saúde-doença, tema conhecidíssimo no campo da Saúde Coletiva, compreende a estreiteza de relação entre as condições materiais de vida de uma sociedade, observadas com a amplitude política, ideológica, econômica, associativa e sociocultural e a condição de saúde de uma população. Usar o termo condicionante permite fugir da tão conflituosa noção de causalidade que pode trazer incorreções e restringir a amplitude dos contextos (LAURELL, 1989).
Há uma dinâmica que estabelece uma clara ligação com a pandemia da covid-19, a nova dinâmica espaço-temporal que permitiu que o vírus se disseminasse com uma velocidade assustadora. Para chegar a tal constatação não é necessária nenhuma reflexão teórica mais complexa, essa é apenas uma descrição do real em sua superficialidade.
Contudo, saliento alguns aspectos relativos a essa dinâmica, pois ela se distancia de um mero fenômeno natural, revestido de neutralidade para unificar o mundo e permitir o progresso. Ela retrata um processo de deterioração do espaço em detrimento do tempo, da agilidade, da velocidade, da pressa (HARVEY,2012). É preciso produzir muito e depressa, pois há uma concorrência sem limites implantada em todos os recantos da sociedade, desde a grande concorrência das empresas em prol de mais venda de mercadorias a valores cada vez menores até a concorrência dos carros no trânsito, ou de todas as comparações concorrenciais instaladas no cotidiano, desde os bancos escolares até o mundo dos esportes.
Essa loucura ensandecida atinge a circulação de mercadorias e de pessoas, trazendo uma mundialização desse processo concorrencial que é a alma do capitalismo, mesmo que para isso a vida fique de lado. Aí é importante perceber a falta de clareza do “rebanho”, pois a pressa e a corrida individual pela produtividade respondem apenas à demanda de um grupo pequeno, a burguesia, que acumula riquezas de maneira infinita, enquanto nós, o resto, vive mal, correndo e adoecendo.
Todo esse contexto desenha a universalidade do ser social que se expressa em todos seus complexos parciais, respeitando suas particularidades (LUCAKS, 2015). No caso da saúde, pensar em processo social dessa forma significa evidenciar a dinâmica entre biológico e social, indivíduo e coletividade, expressado de diferentes formas. Assim o processo saúde-doença mostra sua complexidade e sua essência histórica, negando o biologicismo que coloca os microrganismos, a genética e a biologia como aspectos principais no processo saúde-doença.
Para interromper este debate, pois ele tem uma extensão incrível, quero trazer o caráter conjuntural da pandemia, uma vez que suas bases sociais estão na mundialização do capital, e a compreensão das determinações biológicas específicas precisam se articular a essas possibilidades objetivas dessa fase de crise cíclica do capitalismo para resultar na pandemia experimentada em 2020. Não basta o coronavírus para criar essa pandemia com o formato e a velocidade de transmissão apresentados. A combinação de fatores como a novidade do agente etiológico, seu potencial de transmissibilidade, o grau de imunização da população, as medidas de profilaxia e tratamento mais ou menos conhecidos, entre outros aspectos compõem esse processo.
No tocante ao Brasil, a epidemia assume características explicadas pela colonialidade do poder, onde vidas negras, pobres, trabalhadoras, de moradores de rua, não importam. Onde também importa pouco a própria vida, pois a autovalorização que se reflete no autocuidado e no cuidado com o outro também têm pouco valor. Há uma depressão coletiva no país historicamente humilhado e subserviente, com sua voz e sua vontade amedrontadas e sabotadas pelos próprios pares. O que ajuda a entender o avanço da direita, o amor pelo opressor, pelo torturador, uma pouca valorização da vida, do país e do meio ambiente de maneira ampla.
DESIGUALDADES SOCIAIS NA EPIDEMIA
Como as desigualdades sociais afetam a saúde das pessoas no que se refere à epidemia de covid-19. É sabido que aos mais pobres resta uma maior dificuldade de manter o isolamento social, maior risco de perda do emprego e renda. Em meio aos subalternos há também uma marcada dificuldade de acesso aos serviços de saúde, ao saneamento básico e à moradia digna, onde comumente muitas pessoas precisam dividir um mesmo cômodo, o que impede que as medidas de isolamento entre as pessoas sejam eficazes.
Diante das abissais desigualdades de renda e de acesso a serviços de saúde no Brasil, observa-se um efeito desproporcional da COVID-19 entre os mais vulneráveis. Para ilustrar as desigualdades injustas presentes na sociedade brasileira. Para ilustrar com dados, a mortalidade por doenças do aparelho respiratório aumentou de forma preocupante em todo o Brasil entre os anos 2000 e 2013. A Pesquisa Nacional de Saúde de 2013 indicou que entre os 20% mais pobres da população, 94,4% não têm plano de saúde e 10,9% se autoavaliam com saúde regular, ruim ou muito ruim, mas não consultaram um médico no último ano. Entre os 20% mais ricos, esses índices são de apenas 35,7% e 2,2%, respectivamente. Quanto ao número disponível de leitos de UTI é cinco vezes inferior para os usuários exclusivos do SUS (1,04 leito por 10 mil habitantes, sendo bem menos em estados do Norte e Nordeste) do que para os beneficiários da rede privada (4,84 leitos por 10 mil habitantes), isso de acordo com os dados do DATASUS abertos ao público.
A Pesquisa Nacional de Saúde (2013), estimou que 42% de brasileiros se enquadram no grupo de risco para o COVID-19. Se considerarmos como fatores de risco ter acima de 60 anos, ter sido diagnosticado com diabetes, hipertensão arterial, asma, doença pulmonar, doença cardíaca ou doenças cardiovasculares, doenças crônicas pulmonares, hipertensão, doenças crônicas renais, imunodeficiência e doenças neurológicas.
Há que se considerar, entretanto, que os fatores de risco não estão distribuídos igualmente na população. Principalmente quando se percebe, afastando-se de referenciais biomédicos exclusivos, que 79% das pessoas com um ou mais fatores de risco, declararam ter frequentado apenas o ensino fundamental, ante 28% para os que frequentaram o ensino médio e 34% para os que chegaram a cursar o ensino superior ou pós-graduação. Esta diferença é ainda maior quando se considera quem tem mais de um fator de risco, sendo a presença de dois ou mais fatores de risco três vezes maior entre aqueles que frequentaram apenas o ensino fundamental do que entre aqueles que frequentaram o ensino médio (SILVA E OLIVERIA, 2020).
A preocupação desse texto é evidenciar a importância das desigualdades sociais na incidência de covid-19 e alertar a sociedade que para frear a pandemia seja com ou sem vacina, seja com ou sem um medicamento eficaz contra a covid-19, são necessárias medidas mais intensas para as populações vulneradas (aquelas que o capital tornou vulneráveis). Não basta dedicar esforços maiores para evitar a contaminação de idosos; só será possível conter a pandemia, evitando o colapso do sistema de saúde e a progressão acelerada do número de óbitos, se as medidas governamentais forem destinadas a proteger os mais pobres por meio de políticas de renda mínima, possibilitando o isolamento social, pela ampliação do número de leitos no SUS e pela fila única para leitos hospitalares, afinal não podemos admitir que algumas vidas importem mais que outras.
COLONIALIDADE DO PODER NA PANDEMIA
A colonialidade do poder foi proposta por Aníbal Quijano, sociólogo peruano, nascido em 1930, falecido em 2018 que deixou uma contribuição ímpar à compreensão da realidade latino-americana. Em conjunto com outros autores cunhou a teoria da dependência latino-americana e produziu e discutiu amplamente a teoria da colonialidade do poder, a classificação social, bem como suas consequências para o subcontinente. Seu corpo de trabalho é vinculado ao marxismo, porém atualizado e adequado à realidade latino-americana e tem sido influente nos campos dos estudos decoloniais e da teoria crítica.
Segundo Quijano (2002), a colonialidade é um constituinte do padrão mundial do poder capitalista e seu fundamento baseia-se na imposição e posterior normalização de uma classificação racial/étnica da população do mundo como orientadora do padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjetivos do cotidiano e da escala societal. Essa colonialidade do poder tem seu berço na América Latina.
Quijano (2002) evidencia algumas constatações, como: maioria “branca” no Cone Sul, em função do genocídio indígena do século XIX; aparência de “democracia racial” no Brasil, Venezuela e Colômbia e a consequente invisibilidade dos afro-descendentes; a impossibilidade de criar uma nação, um suposto Estado-nação homogêneo sem modificar profundamente a interpretação histórica; o conflito permanente do Estado independente convivendo com uma sociedade colonial (colonizada, portanto, pós-colonial). Em seu clássico, Quijano (2002) faz a crítica – acertada – das correntes evolucionistas do pensamento à esquerda, herdeiras dos marxismos dos países alinhados em algum momento com a extinta União Soviética.
Com base na teoria da colonialidade do poder, pode-se afirmar que mesmo na saída dos regimes autoritários latino-americanos, houve um reforço no sistema de crenças como se a possibilidade do socialismo fosse trocada pela social-democracia possível, sem o apoio das elites tradicionais. Configura-se assim uma resignação das elites que vem à tona das mais diversas formas, conduzindo vários países a uma virada à direita. Nesse contexto, há que se considerar o peso do Brasil na geopolítica do Continente e a consequente reviravolta conservadora pelo uso da lawfare como projeção de poder ampliada da superpotência (EUA). Assim, a ousadia na política externa do ciclo petista, não foi acompanhada da coerência interna necessária para confrontar o intento restaurador e garantir avanços estruturais na sociedade brasileira.
Na base da sociedade brasileira não se alterou o emprego da violência estatal, extermínio, ausência de direitos civis e genocídio da maioria afro-brasileira. Este padrão se reproduz nos países sob os governos de centro-esquerda e com ausência de protagonismo da sociedade organizada de baixo para cima. Avançou-se muito pouco em termos da necessária descolonização de nossas sociedades latino-americanas. Tomando Quijano como base, observamos que é na ampliação de espaços públicos e com democracia interna no aparelho de Estado, na reinterpretação de nós mesmos através da história social da América Latina e na construção de espaços de poder através das entidades de base e movimentos sociais enraizados é que moram as possibilidades de emancipação. O jogo formal, dentro dos parâmetros das instituições pós-coloniais, tem um limite muito estreito.
A coesão da nacionalidade, típica dos Estados-nacionais europeus, não se realiza na América Latina em função do abismo social estruturante, do racismo pós-colonial estrutural e constitutivo do horror cotidiano das maiorias. O debate estratégico é de profundidade e enraizado em nós mesmos. E aí entram as possibilidades de enfrentamento da covid-19, com solidariedade, preocupação com o outro e com a nação, tudo o que falta de maneira marcante no Brasil.
Torna-se então mais compreensível o descaso dos governantes, das pessoas e dos setores industriais com relação à COVID-19 e seus cuidados decorrentes, pois vidas negras, pobres, colonizadas não importam, nem pro capital, nem pra si próprias. Temos nossa formação social marcada pela colonialidade do poder que repercute na colonialidade da morte, onde algumas vidas não importam nem ao mesmo permanecerem vivas.
REDES SOCIAIS E COVID-19
A sociedade capitalista em seu estágio de intensa concorrência e competitividade, coloca as pessoas umas contra as outras, num completo todos-contra-todos estimulando uma forçada individualização, ruptura dos laços de sociabilidade e afeto, produzindo intensa solidão, desamparo e sofrimento. Que no glossário da saúde aparece representado com elevada frequência de adoecimento mental.
As redes sociais, dialeticamente ao que trazem em sua aparência, aumentando infinitamente o número de contatos e de possíveis trocas – produziria então uma sociabilidade mais intensa e mais profícua – promovem exatamente o seu contrário: separação, individualização e perda do reconhecimento do ser humano enquanto membro de uma comunidade, aprofundando o isolamento em curso pelo capitalismo em sua fase neoliberal. Essa negação do comum é marca do neoliberalismo e sua sina pela competitividade, concorrência e ruptura de laços sociais e afetos, brutaliza o humano.
As redes sociais surgem com uma funcionalidade muito clara: aumentar o tempo de trabalho e transformar o tempo livre em tempo de produção de valor. Valor esse que é agregado nas mercadorias, nas vendas (esfera da circulação), na junção de dados e preferências que compõem perfis regulados por algoritmos com a finalidade exclusiva do controle político das pessoas e das coletividades (CASTELLS, 2017). Com os algoritmos, cada grupo identificado por uma ideologia comum vai pouco a pouco tendo suas expectativas alimentadas e aprofundando a separação, pois as redes tratam de nutrir as posições extremadas, juntar interesses próximos, e criar perfis ideológicos sem diálogo. E esse processo não se dá apenas entre esquerda e direita, mas entre facções dentro de uma mesma visão geral de mundo.
Há que se considerar que as redes se tornaram aliadas para muitos durante o confinamento, até mesmo para se “desconectar” do que está acontecendo, também é verdade que, para outros, a grande rede pode ser uma fonte de ansiedade (pela grande carga de informações dessa crise sanitária e até pela saturação de tantas atividades oferecidas), de frustração (por não possuir o que outros aparentemente têm), podendo até ser um sério problema de dependência.
As redes sociais nesse momento de isolamento social possibilitam manter as interações com amigos, familiares e vizinhos. Mesmo aqueles que não estão podendo fazer o isolamento social, com a suspensão das aulas e de muitas frentes de trabalho, também estão mais tempo em casa e acessando mais as redes. Este acesso possibilita que muitos continuem a ter aulas, a manter atividades de trabalho, a participar de atividades culturais e artísticas e acessar suas redes de apoio. É através das redes digitais que se tem acesso a informações sobre a pandemia e as formas de proteção. A internet tem o papel fundamental de manter uma certa rotina e parâmetros de “normalidade” nesse momento de suspensão das atividades presenciais.
O uso intensivo da internet, entretanto pode gerar uma adição, um uso compulsivo, definindo uma dependência e centralidade do uso da internet em relação a qualquer outra ação cotidiana. A participação intensiva nas redes sociais também pode gerar um “excesso” de informação ou, em muitos casos, desinformação sobre a pandemia. O excesso de informação pode gerar ansiedade e a difusão da noção de um “medo global”, com ênfase no número de mortes e previsões das curvas de contágio. Por outro lado, a depender das redes a que se está vinculado, as redes sociais podem prover um conjunto de fake news, que descredibilizam a ciência, o conhecimento epidemiológico e as orientações sanitárias.Com a informação importante que as fake news se espalham pelas redes com uma velocidade 5 vezes maior do que uma notícia verdadeira. Isso porque elas dizem aquilo que as pessoas querem ouvir, mesmo que seja mentira. No caso de crianças e adolescentes, o uso intensivo também pode aumentar as chances de sofrer e praticar violências na ambiência digital.
Desta forma, a pandemia passa a ter uma consequência muito mais grave do que a simples contaminação de uma parcela significativa da população e morte de muitas pessoas, mas trata-se de um aprofundamento do processo de alienação já em curso pelo capitalismo/neoliberalismo, pelas redes sociais e pelas fake news. Configura-se um quadro assustador para a sociabilidade, para a política e para a saúde, uma alimentando negativamente a outra. Por isso é hora de reinventarmos o pensamento crítico, os modos de vida, sabermos seguir e romper regras. É hora de regularmos o uso das redes sociais e colocarmos elas a nosso favor. Como fazer isso é que o grande desafio.
COVID E SAÚDE DO TRABALHADOR E DA TRABALHADORA
Outro olhar fundamental sobre a epidemia da covid-19 no Brasil é a relação que ela estabelece com o mundo do trabalho. Antes da pandemia já se percebia uma escalada nos índices de desemprego e de redução da taxa de lucros das empresas. Mesmo que o mundo não tivesse a pandemia, sérias dificuldades ocorreriam na economia mundial. Processo que tende a acontecer de maneira mais arraigada no Brasil por ser um país capitalista dependente e ser comandado por um presidente que trabalha contra o povo.
As desigualdades sociais se acirraram no Brasil com a pandemia, o que se refletiu em maior risco de exposição ao vírus e na incidência, gravidade e letalidade da COVID-19 para as classes subalternas. A desigualdade fez uma divisão epidêmica do trabalho entre os que podem ou não ficar em casa, deixando uma parcela significativa da população que depende de ganhos diários, ou dos próprios negócios, os chamados microempreendedores individuais (“informais”, “diaristas”, “autônomos”, “uberizados”, “terceirizados” etc.), totalmente expostos à covid-19, causando uma acelerada disseminação da pandemia em comunidades pobres. Há que se lembrar também do exagero na cessão de exceções, onde a depender do interesse e do poder do setor econômico, o governo concedia o caráter de serviço essencial, obrigando os trabalhadores a se exporem ao vírus. Isso sem contar que a covid-19 no Brasil escancarou a ausência ou insuficiência do “Estado mínimo”, isto é, o Estado brasileiro não protegeu a vida do seu povo, pois não assegurou renda mínima para restringir de forma efetiva o contágio.
Mas a sociedade e principalmente os patrões precisam reparar o que causaram à classe trabalhadora. A começar por reconhecer a contaminação por covid-19 como acidente de trabalho. Segundo o Art. 19 (Lei 8.213/91): “Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa (…) provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução permanente ou temporária da capacidade para o trabalho.” Art. 20: “Consideram-se acidentes do trabalho, nos termos do artigo anterior, as seguintes entidades mórbidas: I –Doença profissional, (…) desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social; II –Doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I”.
Não se pode excluir a covid-19 de acidente de trabalho, pois na mesma lei supracitada são exclusões: “a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho.” De fato, a covid-19 não é uma doença com a qual toda a população tem que conviver, por isso não é endêmica (assim como a malária em grande parte do Brasil), mas a covid-19 configura-se em um risco especial para parte da população.
No mesmo sentido de reparação aos trabalhadores essenciais desse período de epidemia no Brasil e pandemia mundial, a FRENTE AMPLA EM DEFESA DA SAÚDE DOS TRABALHADORES, em julho de 2020 lançou uma proposta, onde o acidente de trabalho: “… refere-se aos casos da doença contraída por trabalhadores(as) que precisam exercer suas atividades de trabalho fora de seus domicílios, assim como por aqueles(as) que, em decorrência de atividades econômicas desenvolvidas em seu domicílio, têm contato com pessoas de fora de seu convívio domiciliar. Serão considerados casos, atuais ou pregressos, aqueles com diagnóstico ou suspeita diagnóstica firmada por médico e os assintomáticos com teste positivo. Seu devido reconhecimento e notificação são fundamentais para que trabalhadores(as) adoecido(as) tenham acesso a direitos sociais, bem como para contribuir com a Vigilância em Saúde do Trabalhador.”
Dessa forma, é preciso ficar claro que COVID-19 é acidente de trabalho e os empregadores e a sociedade como um todo precisa reparar o dano causado a quem trabalha normalmente enquanto parcela significativa da população fica em casa, na segurança do seu lar.
RELIGIOSIDADE E COVID-19
Nessa parte do texto, o tema abordado é o da religiosidade e como isso interfere no comportamento da pandemia. Os aspectos que englobam os fatores culturais, e da ordem dos costumes, que denominamos modo de vida, por estarem conectados ao modo de produção social da vida, no contexto histórico em tela, assumem peso decisivo no contexto de uma pandemia.
No caso do Brasil e seu povo, na imensa maioria, pobre, com baixa escolaridade, acostumada ao açoite, pois carrega a origem escravocrata de intensa reprodução da humilhação das mulheres, pretos e pobres, onde a regra é perder direitos, salários e a própria vida em nome do trabalho, resta apenas a fé. Ser “temente a deus” é o que resta para uma parcela muito, muito grande da população. Mas quando digo isso, não falo de um deus que inclui, que olha para as desigualdades sociais, ou que promove solidariedade e a organização política da comunidade, o deus a que me refiro é um deus mágico. Um deus capaz de resolver pelas mãos de um pastor falastrão todos os problemas da existência daquele vivente, um deus que exorciza os demônios, que cura das doenças, que tira depressão, ansiedade e promete até fazer os fiéis enriquecerem.
A partir disso, deve-se colocar o mundo evangélico no centro do debate público e da epidemia do coronavírus no Brasil. Os evangélicos relativizam mais a gravidade da covid-19 e aprovam mais o governo Bolsonaro do que a média da população, conforme uma pesquisa recente do Datafolha. Esse segmento religioso deve superar o católico nos próximos anos, segundo estimativas do IBGE.
O maior desafio desse debate sobre religião e política talvez seja apontar os efeitos perversos causados pela ação inadequada de alguns setores evangélicos, sem que isso caia na narrativa generalizante e preconceituosa que demoniza todo um universo religioso, que é plural e que tem suas próprias disputas políticas internas.
Entretanto, não se pode esquecer que pastores como Edir Macedo e Silas Malafaia têm feito um grande desserviço ao combate da epidemia, colocando-se contra o isolamento social e temendo o esvaziamento das igrejas, que é fonte de arrecadação de dízimo e também de formação de coesão social. Mais do que isso, multiplicam-se casos de charlatanismo, dizendo que quem tem fé está imune, que a epidemia é coisa de satã, uma vingança divina. Também há aqueles que oferecem receitas mágicas de cura.
Malafaia e seus deputados da bancada evangélica têm feito lobby com Bolsonaro, que acena cada vez mais para esse setor, violando constantemente os dispositivos constitucionais do estado laico. O presidente inclusive decretou que as igrejas não deveriam ser fechadas, classificando-as como um serviço essencial, agradando os pastores, os fiéis e cativando sua “temente” base eleitoral.
A conexão com o crente é fundamental para Bolsonaro se manter no poder. Enquanto ele conseguir isso, sua base será fortalecida. As igrejas evangélicas, neste momento de crise, se colocam como uma alternativa para as populações mais vulneráveis, oferecendo tanto conforto emocional quanto ajuda assistencial.
Desta forma, é preciso que os movimentos sociais por meio de ações organizadas dialoguem com a população evangélica encontrando maneiras de convencimento e de empoderamento dessas pessoas que delegam à deus a resolução de seus problemas, constituindo um rebanho para que politiqueiros, oportunistas e mal-intencionados usem sua fé, seu dinheiro e roubem sua cidadania. O projeto neoconservador em curso no Brasil e em vários países do mundo usa da fé cega para viabilizar projetos retrógrados, impopulares e que servem apenas para aumentar as fortunas dos mais ricos e manter a classe trabalhadora quietinha, trabalhando docilmente e orando.
CONCLUSÃO
Trouxe neste texto alguns elementos para pensar nas especificidades brasileiras com relação ao avanço da COVID-19, pois penso o caso brasileiro caricato em termos de desagregação do tecido social e de controle dos corpos pelo poder do capital, caso que deve ser bem estudado para que possibilidades emancipadoras sejam construídas para além do capital.
Seguindo a trajetória proposta neste texto, desde a discussão sobre as condições materiais de vida e a COVID-19, a então denominada determinação social do processo saúde-doença, que insere o processo saúde-doença no certame social, somado às e as desigualdades sociais em saúde, que reforçam essa relação e fazem a denúncia, recheada pela colonialidade do poder, que traz elementos complexos para evitar minimamente a tola redução materialista, começa a se desenhar um quadro de melhor entendimento da epidemia no Brasil. Quadro esse atualizado pela análise da influência das redes sociais na sociedade atual, contexto todo que se materializa nos ataques concretos aos direitos e à saúde do trabalhador cada vez mais oprimido que é controlado pelas religiões, que vem desempenhando o controle e a alienação de maneira exemplar no Brasil.
A humanidade encontra-se numa encruzilhada, onde ou reforçamos laços de solidariedade e compomos uma grande comunidade, ou seremos varridos da superfície do planeta por pandemias e desastres naturais, situações que só podem ser superadas e controladas a partir da união entre as pessoas e destas com a natureza.
*Doutor em Saúde Coletiva, professor do Departamento de Saúde Pública da UFSC.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2017.
HARVEY, David. O espaço como palavra-chave. GEOgraphia, v. 14, n. 28, p. 8-39, 2012.
LAURELL, Asa Cristina; NORIEGA, Mariano. Processo de produção e saúde: trabalho e desgaste operário. São Paulo: Hucitec, 1989.
LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social 1. Boitempo editorial, 2015.
SILVA, Daylane Fernandes da; OLIVEIRA, Maria Liz Cunha de. Epidemiologia da COVID-19: comparação entre boletins epidemiológicos. Comun. ciênc. saúde, 2020.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade, poder, globalização e democracia. Novos rumos, v. 37, n. 17, p. 4-28, 2002.