Luiz Carlos Heleno*
Às margens do Rio das Cinzas, em Tomazina, na Serraria – um braço do rio -, mãe olhava as filhas menores enquanto nós, irmãos e irmãs todos com mais de 13 anos, brincávamos no raso do que a gente chamava de prainha. Enquanto pai conversava com uns homens lá na porta da venda, mãe punha os olhos nas águas pra não nos perder de vista. O perigo estava depois do barranco, de onde era possível ver o rio e ouvir o barulho de suas correntezas vindo de um longe, dali seguindo rumo à sua foz ao encontro do Rio Paranapanema. Mãe nos alertava quanto ao perigo, mas a gente a convencia de que só queríamos ver o rio grande, escalando o barranco, até se esbarrar nas pedras da encosta – ficávamos ali olhando aquele mundaréu de águas sumindo na curva lá adiante a se perder de vista. O Rio das Cinzas era de fato nossa ideia mais próxima de um mar que ainda não conhecíamos. Logo pai chegava e contava que esse rio vem de muito distante e que vai pra outro lugar mais longe ainda, falava de bravos pescadores e de afogamentos, de bichos peçonhentos, e depois pedia pra gente voltar pro raso da prainha. Certa vez, ali na beira da parte extensa do rio, encontramos Granato, um amigo da família que meu tio João chamava de Tarzan. Acostumado a ver os filmes do herói das selvas no Cine Pindorama em Siqueira, não pude deixar de imaginar Granato apanhando um daqueles cipós dependurados nas árvores e atravessar o rio, de uma margem à outra, num único impulso ao longo de um único grito. Neste outubro de 2020 em que já nos encontramos distante do Rio das Cinzas, às margens das nascentes de Piraquara, nossa mãe completaria 84 anos. Nosso pai fez 90 neste mesmo outubro, e no isolamento do quintal de casa, goza de saúde regular para um corpo de quase um século, e vez em quando resmunga ranzinza com o uso necessário e obrigatório da máscara em tempos de pandemia, cujo vírus invisível habita superfícies como um ladrão impiedoso de vidas. Nossa mãe, avessa a qualquer coisa que lhe prendesse os movimentos, talvez optasse sossegadamente por não sair de casa, só para não ter de passar pelo desconforto. Uma das últimas imagens de nossa mãe (que fugia de fotografias discreta e sorrateiramente) foi captada num piquenique às margens das nascentes em Piraquara, na ocasião com alguns netos e netas, e da mesma maneira como nos piqueniques à margem do Rio das Cinzas, ela se punha de olhos atentos aos movimentos das crianças ao redor da toalha quadriculada, naquele convescote com guloseimas, ou das correrias nas proximidades das pequenas lagoas. Mãe não demonstrava quase medo nenhum da morte, mas cultivava um pacto radical em defesa da vida. Essa coisa de que “para
morrer basta estar vivo”, mãe poderia até entender, mas ela não abria mão do receituário de possibilidades que contemplasse a razão de viver. Se mãe ainda estivesse por aqui hoje, com os mesmos olhos que nos vigiava e alertava para a iminência dos perigos à margem do Rio das Cinzas ou das nascentes de Piraquara, ela ficaria atenta às notícias sobre vacina contra a covid 19, e se poria a disposição, nos dias de vacinação, para ajudar a juntar e a arrumar todas as crianças ao seu alcance, netos e netas, crianças de amigos/as e agregados, para a ida necessária ao posto de saúde mais próximo. Não ter medo da morte, mãe sempre achou razoável; mas conhecer pessoas que olhassem a vida com desprezo, foi coisa que nossa mãe nunca prezou. No seu silêncio prático e afetuoso, mãe desejaria que chegasse logo o dia em que ela pudesse passear com as filhas para um novo piquenique num canto qualquer dessa cidade, ou pudesse reunir toda a família sob a sombra das árvores do quintal, já livre dos riscos a que estamos sujeitos nessa quase metade de primavera.
*Escritor, poeta e compositor