Bruno Vieira*
Quem assistiu Rebobine, Por Favor sabe: uma locadora é mais que uma “loja”, é um ponto de encontro, um fenômeno social na malha da cidade. O contato com os atendentes, as recomendações, as garimpadas e descobertas de pequenos tesouros… É um pouco como as lojas de discos, com a diferença que essas estão voltando lentamente, enquanto as locadoras veem subirem os créditos ao som de The Sound Of Silence.
Se o tempo prova alguma coisa é que a raça humana – e por consequência a cidade – avança no ritmo de certas mortes anunciadas. A eletricidade foi a morte da vela, o carro a morte da carroça, a internet… Bem, a morte de quase todo o resto. Alguns casos até fogem à regra: o cinema segue por aí mesmo com a televisão. Já outros são um retrato doloroso da impiedade do tempo.
As videolocadoras já viram tempos melhores. Mesmo tendo trocado os acervos em VHS por DVDs e mais recentemente blu-rays, em terra de Netflix, torrents e algoritmos que sabem até que tipo de roupa íntima você prefere, é difícil competir.
Em Curitiba quase todas minguaram. Foram ficando as que eram direcionadas aos nichos dos cinéfilos, filmes raros e tudo mais. Tem uma dessas especializadas em filmes cult a duas quadras de um dos melhores Shawarmas da cidade. Bem no centro, onde a cidade-modelo encontra a boca do lixo e a boemia ganha as madrugadas.
Parece até coisa de filme. Uma portinha tímida revela milhares de títulos raros organizados por gênero e diretor. Entrar ali é como atravessar um guarda-roupa antigo e ir parar em Nárnia. Atrás do balcão um senhor que, muito antes de ser engenheiro, é o cinéfilo por definição. Comprou a locadora do antigo dono para manter o acervo intacto e impedir que ela fechasse.
Representante exemplar de uma classe rara que pouco a pouco foi substituída pelos algoritmos, resume boa parte – senão todos – dos títulos de cabeça. Sabe indicar aqueles que melhor casam com o gosto de cada cliente e culpa os cinemas de rua, que tanto frequentou na infância, por essa paixão que carrega. Ali, como em toda boa locadora em seus tempos de glória, o cliente aluga sempre alguns minutos de conversa junto com cada filme.
Quer dizer, alugava. Agora faz mais de ano que o lugar fechou. A filha desse senhor tentou levar o empreendimento para frente durante alguns meses depois que ele se suicidou. Ao que parece comprar a locadora foi em parte insistência dela. Tentativa de motivar um pouco o pai, já que ele gostava tanto assim de cinema. No final, o medo que ele tinha acabou se concretizando. O acervo foi vendido para colecionadores de plantão e outras locadoras que ainda teimam sobreviver. Família separada.
Do outro lado daquelas mesmas portas de vidro com gradil preto não há mais Nárnia. O ponto virou um salão de beleza, um dos muitos que existem espalhados por toda cidade – enquanto houver cabelo a ser cortado eles têm sobrevivência garantida. Menos mal, o lugar tinha tudo para virar um bistrô, cervejaria ou cafezinho vintage, e acho que mais um desses ninguém precisa.
*Bruno Vieira é jornalista formado pela UFPR (2017), produtor musical e cronista.