Das águas da morte

Adalberto Fávero

Tempos escuros fazem des-sonhar e sentir abstinência de gente. Ando assim, sentido da distância física de tantos ainda vivos e vários que se foram antes do combinado.  Seria necessário um banho de águas límpidas e capazes de recuperar esperanças para vencer o vírus das veias oficiais do tempo presente.

Por essa razão ando relendo coisas do contador de histórias das Américas, dos esquecidos das Américas, ditas inglesas, espanholas e portuguesas. Esses, brancos que aqui chegaram e disseram ter começado a história; que agora afirmam que ela acabou e que temos apenas um caminho.

Desconfio destes profetas e ando a buscar boas novas menos afeitas à destruição e abuso dos homens, da terra e das águas que já foram bens comuns e satisfação dos ninguéns e dos sem nomes.

O velho contador de história profetizou que “o Ganges. O rio sagrado que atravessa a Índia, nasceu dos sete passos do deus Vishnu, que deixou sua marca nas pedras das sete regiões. O rio era a encarnação de Ganga, a mais linda das deusas, que tinha casa entre as estrelas até que teve a ideia de vir morar neste mundo assassino. Até alguns anos, os peregrinos iam ao Ganges beber a água da imortalidade. Agora aquela água mata. O Ganges, um dos rios mais contaminados do mundo, adoece quem o bebe e adoece quem come alimentos regados pelas suas águas.” ( Eduardo Galeano)

Aqui nestas terras de antigas águas limpas, as histórias repetem-se, as águas carregam venenos e o lixo das sobras dos homens que desaprenderam a amar a terra. Nas cidades cobertas de pedra e asfalto que espanta as águas, rios correm mortos, exalam o fétido odor de um sistema econômico de morte e carregam o vírus da desesperança dos profetas.

Nestas cidades existia um rio; um rio e uma cidade, um país e um povo que desejava acreditar, diziam, na recuperação de sua alma pelo direito de sonhar o presente.

Corria do norte para o sul como uma serpente de águas límpidas e solitárias… Belém de tantos nascimentos, cortando as esperanças, as saudades e os sonhos de uma cidade nascente. Assim eram essas águas e as esperanças!

Em época de solitárias presenças humanas, a solidão das águas límpidas conhecia a convulsão impertinente dos peixes e sempre mais transeuntes, mas sempre a solidão.

Solidão é um sentimento que a gente sente e deseja como criança feliz pela discrição da própria intimidade resguardada, mas sofrida ao mesmo tempo, porque solidão destrói a alma da gente. Ela, às vezes, é grande e difícil de carregar e quase todos em certas horas gostariam de trocá-la por uma comunhão qualquer, ainda que por uma fugaz e indigna parceria intransigente.

Serpente de águas límpidas, ziguezagueando pelos campos, foi ganhando sempre mais vizinhos e detritos impuros enquanto descia rumo às águas maiores. Na solidão de sua incompreendida trajetória já não se podia mais ver a floresta atrás das grandes árvores.

Mais ao sul da cidade, cheio de saudades de tempos claros, ganha lago público de companheiro em lugar de passeio. Mesmo de outra fonte e manancial mais puro, a solidão poderia dar lugar à vida e a um novo nascimento.

Onde imperava a mata e as pastagens foram nascendo construções de pedra e com argila da mão de oleiros, a companhia de moradias, indústrias e escolas, trouxe gente e crianças de idades diversas, (in)fiéis companheiras.

As águas dos beléns de novos nascimentos ganharam a vida e experimentaram a morte que correm soltas, agora como em Roma com sua cloaca máxima. Era o futuro daquelas e de outras gerações, trocando sonhos por doenças diversas em reedição de uma metrópole (in)decente no assassinato das suas águas límpidas.

A cada dia um nascimento de várias mortes. Não se pode mais profetizar que Belém sempre renasce, pois ninguém se banha igual duas vezes nas mesmas águas e morre quem beber de suas águas ou comer de seus alimentos.

Nunca mais a solidão da serpente. Foi embora com a ingratidão da cidade que transformou sua água em lixo, assassinou seus peixes com o veneno da fábrica e da casa sem esgoto… e o sol, envergonhado, andou se ocultando do ocidente.

1700, 1800, 1900, 2000, 2020… séculos e décadas de vida e de morte criando (dês)comunhão entre o rio e a cidade, a companhia do tempo e da vivacidade de vidas não mais estrangeiras diante dessa história…  vidas de tanta gente.

Cidade, vilas, casas, rio, árvores, adultos e crianças, trabalhadores, homens de bens e despossuídos da terra, pais e filhos, homens e mulheres, mas uma história deste tempo em que foi esquecido que a mãe terra de todas as raças, cores e crenças ensinou que para ser pessoa é necessário ser um pouco árvore, água, vento e fogo que aquece sempre. História de vida sem sorte??!.

A margem do rio refeita por campanhas e falta de políticas públicas, a criação artificial de oásis de lagos ainda límpidos com novos habitantes, a cidade que deseja repetir sonhos e viver das (in)competências e afetos (dês)humanos, não solidários através do tempo… cidade, rio, árvores, aniversários recentes, (in)decentes!

Unir-se pela mãe terra, pela cidade, pelas pessoas, pelas águas e pelos quero-queros ou (re)aprender como é difícil o parto e o nascimento, o quanto é tormenta para o inverno o advento da primavera que virá pelas regras do próprio tempo? Quanto é fácil a morte!

Agora, que milagre inexplicável de nascimento e de saber da história, fará a cidade acordar e redescobrir ou reinventar a comunhão com o rio de águas mortas, filho da ingratidão de tantos? Esgoto do tempo!

Tratar-se-á, ainda, daquele espaço do sonho, da imaginação e realidade sem o qual se esvai a própria seiva da vida, tornando-a possível, digna ou indecente?

Voltarão, em algum momento, as saracuras a anunciar o alvorecer no escuro da noite, desnorteadas pelas luzes da cidade e incapazes de prever o tempo? O bem-te-vi insaciável a acomodar-se incólume no pára-raio insensível, fingindo-se de pica-pau a furar a madeira ao relento? O joão-de-barro a construir mais uma casa para sua companheira e seus filhotes inocentes? Os quero-queros adaptados e soltos e os pintassilgos nas gaiolas a entoar sem parar sua mais “nova e treinada criação” pungente? As crianças a cantar e gritar seus mais originais sons inconsequentes? Assim, junto com o sol e neblina insistentes, a misturarem-se os tons, os homens e as mulheres, os pássaros e o rio, a água sem vida, todos em algum tipo de sinfonia poética ou patética de espaço e de tempo? Ainda será possível fazer vibrar a vida das cidades que alvorecem todo dia e lançam suas chamas do momento que sentem o futuro como metáfora chegar devagar, obrigado a ser presente?

O abraço da mãe terra que transforma, incendeia as esperanças mornas e acalenta as folhas aturdidas pelo vento, retomarão apenas a solidão de seu assento a (ex)comungar a vida com as formas e as histórias encobertas na discreta ausências dos ninguéns e esquecidos na vida e na morte de seu próprio tempo?

Cantarão, ainda, os homens, as águas de março, da América de todas as raças, da vida superando a morte, cantarão a qualquer tempo?!

 

(07/2020)

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