José Miguel Rasia
PPG Sociologia – UFPR
A quarentena não é uma medida de prevenção nova, sua invenção remete ao tempo da Peste Negra e posteriormente à Gripe Espanhola. Sua adoção agora ocorre num momento da civilização em que predomina o mundo acelerado e desencantado. A Física, a astrofísica e a biologia transformaram o mundo centrado no sagrado e no mito em objeto da investigação científica, da razão. A biologia, a física e a química transformaram o homem em massa, volume, sistemas e células. A criação divina cedeu lugar para o evolução e o que nossos sentidos veem, tocam e sentem se transformara em objeto da investigação e da explicação científica. O mistério acabou. Não existe nada que não esteja ao alcance da curiosidade e da investigação científica. Os artefatos de medida e a aferição de tempo e do movimento comportam não só relógios, ampulhetas ou máquinas, mas também sistemas que executam a tarefa de medir o tempo com muita precisão. A passagem dos instrumentos mecânicos aos instrumentos movidos à energia solar e atômica, são exemplos do avanço nos meios de medir o tempo. Não há nada aparente e nem mesmo físico que os conecte, no entanto funcionam como se incorporassem em seu interior, escondido de nossos olhos, um dispositivo mágico que lhes transmite energia de forma remota. Fazem parte destes meios todos os instrumentos movidos a radioatividade e ondas eletromagnéticas e que parecem funcionar por si mesmos. Sem isso não teríamos o que conhecemos hoje por mundo acelerado, produto dessas inovações, herdeiras dos primeiros artefatos criado para medir, acelerar e controlar o tempo. Todos filhos da mesma mãe, a razão.
Quando o tempo, progressivamente, se torna objeto de conquista da razão, seu uso é organizado em função de sua maximização na realização das tarefas. Não há mais tempo a perder, tempo é ouro e assim por diante. No mundo da produção e do mercado os ganhos são diretamente proporcionais ao controle racional do tempo e seu uso é incorporado na organização das condições materiais da produção. Isto não é novo, está na base da discussão sobre a produção do capital, formulada por Marx. Do trabalho artesanal, à manufatura e à indústria moderna e sua linha de montagem, o que está em questão é movimento, tempo e razão. Muito se investiu na busca de fórmulas e meios que evitassem a perda de tempo no processo de trabalho. Ford foi exemplar nisso, ao organizar um processo de produção com trabalhadores fixos e matéria prima volante. Antes disso, os capitalistas já haviam inventado a divisão do trabalho, cristalizando e parcelando trabalho e trabalhador em tarefas executadas ad eternum, mas a perda de tempo na passagem de uma operação à outra só foi resolvida com a linha de montagem. Chaplin, nos mostrou tão bem como isto se sucede, e mais, como isto acelera, trabalho e trabalhador. Com este exemplo imagino que possamos compreender não só as bases físicas do trabalho, mas as disposições físicas e psíquicas do trabalhador, comandadas por um autômato que lhe é estranho.
Se admitirmos que as metáforas de Chaplin em Tempos Modernos, servem para representar a realidade da primeira metade do século XX, a caminhada em direção ao controle do tempo andou a passos cada vez mais largos. Avançamos cada vez mais na concepção racional do tempo; foram ficando cada vez mais definidores da nossa relação com o outro termos como “não gasto tempo com bobagem”, “não tenho tempo para brincadeiras”, “não vou gastar tempo com sua conversa mole” etc.
O que me chama atenção nessas expressões diz respeito a como nos negamos cada vez mais à sociabilidade e à socialização. Administramos a vida e os afetos como se fossemos a matéria prima em numa linha de montagem. Alguns podem achar que estou exagerando, com saudade de um tempo menos acelerado, que estou sendo nostálgico. A ideia não é essa, embora possa ser verdade, afinal 70 anos pesam, o tempo pesa.
Desacelerar, Isolar, Distanciar
Agora posso dar o último passo deste texto, mas antes tenho que dizer que minha escrita tem as marcas de nossa experiência civilizatória calcada na racionalidade. Se hoje esta experiência está ”programada” para que tudo na vida possa ser comparável ao movimento da esteira ou da linha de montagem, o esforço que ela nos exige não é só para a compreensão de como chegamos aí, mas de como podemos nos manter nela. Alienação gera alienação, mas não sem muito mal estar. A quarentena nos obriga a diminuir a velocidade da esteira e gera a incerteza por não sabermos como voltarmos à ela e como enfrentaremos esse tempo de desaceleração e até mesmo se voltaremos. Diz-se que há um novo normal em gestação. Que bebê encantador ou que monstro poderá surgir disso não sabemos, por enquanto.
Se a linha de montagem pode ser tomada como exemplo da inversão da relação indivíduo, tempo e movimento, ainda assim reconhecemos nela nosso lugar. Porém, desacelerados com o mundo por um vírus. O mundo desacelerado, porém conserva a simultaneidade do tempo e do espaço através da rede mundial de computadores, que nos coloca em contato com tudo e todos e nos faz perguntar em que lugar e em que tempo estamos? O que temos a dizer sobre nossa interação com esse outro tão distante e tão próximo, tão estranho e familiar ao mesmo tempo?
Talvez o que possamos dizer é que nos encontramos num mesmo ponto de uma linha temporal imaginária, que marca o tempo e define o espaço, que ainda somos indivíduos situados. Imaginária ou real esta linha é ainda a expressão da nossa condição humana, da razão, da ciência e da técnica, em suma da civilização. Esta linha seria então o suporte
A ideia de tempo real tem dado conta de nos ajudar a entender essa possibilidade de estarmos aqui e em outro lugar? Quantos espaços pode ocupar um corpo num mesmo tempo? Há que se refazer o princípio de Newton? Só refazendo este princípio, mediatizado agora pela virtualidade do espaço, consigo explicar o fato de ter presenciado a explosão das Torres Gêmeas sem sair de Curitiba. Nem todos que viram a cena enquanto ocorria, se envolveram nela como se estivesse próximos, a surpresa tomou alguns por inteiro, para outros era apenas mais uma cena filme de ação.. Os que foram tomados pela surpresa e o estupor, perceberam que de fato um corpo pode estar em mais de um lugar ao mesmo tempo, desde que esta posição seja mediada pelas tecnologias da rede mundial de computadores. A simultaneidade da presença nos faz perguntar sobre o envolvimento que podemos sentir nessa condição. Assim, o tempo virtual e tempo real, se confundem porque o tempo virtual e a simultaneidade que ele inaugura, neutralizam a distância entre dois pontos: tudo pode ser aqui e agora, embora não seja aqui.
Se a racionalidade humana foi o ponto de inflexão da evolução que permitiu a ampliação do controle sobre o tempo, os satélites de comunicação e a rede mundial de computadores nos permitiram elevar o grau desse controle incomensuravelmente, neutralizando a noção de espaço, borrando limites e acelerando sem deslocar, juntando o distante ao aqui. O longe não existe mais.
No caso do 11 de Setembro estou aqui, mas estou lá, não só pelo impacto do ato, mas pelo que está acontecendo como efeito da ousadia e do cálculo humanos, da civilização e sua racionalidade, assim como não há mais jaula de ferro, não há mais fronteiras. Não há mais fronteiras? Não é isto que dizem os movimentos migratórios, as fronteiras nunca foram tão vigiadas, nem tão rígidas como agora.
A pandemia do novo coronavirus como evento e a quarentena, podem representar uma tentativa de aprisionamento do tempo e do mundo acelerado. É o movimento natural do vírus, que determina a velocidade, o deslocamento, a aceleração e não a razão. A morte aqui age em seu sentido mais verdadeiro, a imobilização, o ponto final. Desde a epidemia de “Peste Negra” não se tinha notícia de um efeito tão devastador e tão rápido de um vírus. Os efeitos, imaginários e reais do adoecimento pelo novo coronavirus e a incapacidade da ciência em responder no tempo da infecção, levou-nos ao isolamento e à distância social. A falta de uma profilaxia eficiente para conter o vírus, recuperou uma prática profilática do mundo medieval. O que nos assusta é que o presente encontra o passado, e o passado não só determina nossos movimentos no presente, determina nossa expectativa de futuro. O isolamento do mundo escancara a falibilidade da razão moderna e os limites no enfrentamento dos grandes eventos da natureza, as catástrofes. A mesma razão que desencanta e acelera o mundo e o tempo, borrando as estruturas da cronologia em favor da simultaneidade, pede agora que o mundo desacelere. Nunca foi tão verdadeira o dito, “pare o mundo que eu quero descer”. Se pudéssemos desceríamos todos, mas como no poema de Drummond, “Minas não há mais, e agora José?”. A metáfora acionada aqui transforma o mundo em um não lugar, para utilizar uma expressão da moda: o mundo, lugar conhecido não há mais.
O movimento da natureza se impôs sobre o mundo acelerado e sobre o tempo racionalizado. Faliram as engrenagens de um e de outro e mergulhamos todos na angústia de Penélope à espera de Ulisses. Até quando? Sabemos que Ulisses retorna, é do mito e do herói trágico cumprir o destino, mas não sabemos a duração da espera. Se a angústia de Penélope comporta ausência e espera, diferentemente dela, não temos um tapete para tecer e desmanchar. Não há o que nos distraia.
Para além das ameaças do vírus, do medo de adoecer e morrer, instaura-se a angústia da convivência restrita e de um tempo que se apresenta interminável, uma espera sem fim. Inácio de Loyla Brandão, aos 83 anos, afirmou outro dia que no isolamento teve que aprender a conviver com a esposa o dia inteiro. Quantos de nós tivemos que voltar a desenvolver atividades que já tínhamos esquecido ou que nunca nos foram ensinadas? Todos tivemos que compactuar com a desaceleração e desmanchar os tapetes da casa. Nem todos conseguiremos refazê-los, até porque poucos sabem tecer. Nossa subjetividade por demais marcada pela aceleração do tempo e do mundo, agora se ajusta a um repouso que cansa, e como cansa!