Clóvis Gruner*
Ainda é cedo para afirmar que “o jogo virou” – aliás, provavelmente ainda estamos longe disso. Mas os acontecimentos das últimas duas semanas permitem, pelo menos, falar de um esboço de reação, e pela primeira vez desde que Bolsonaro assumiu o governo, há mais de um ano, o presidente não esteve no controle das narrativas. Não é muita coisa, mas é um começo, e é melhor do que o quase nada que a oposição construiu nos 18 meses anteriores.
Começou com a decisão de alguns dos principais veículos do país em retirar seus jornalistas do “cercadinho” a que Bolsonaro os confinou. Depois, vieram os movimentos, ainda virtuais, de oposição a Bolsonaro e defesa da democracia; uma ampla cobertura na mídia internacional, denunciando os desmandos e a irresponsabilidade do governo no combate à pandemia do coronavírus e, finalmente, as manifestações do último domingo, 07 de junho, em 11 estados brasileiros.
O governo reagiu subindo o tom das ameaças, o que também pode ser lido como um indício de que sentiu o revés. Afinal, como aprendemos naquele fatídico vídeo de 2019, publicado na conta do vereador Carlos Bolsonaro, hienas, quando acossadas, reagem em bando e agressivamente, atacando de maneira furiosa quem as ameaça. É o instinto de sobrevivência animal, do qual depende a segurança da alcateia. Bolsonaro e seus cúmplices sabem que estão a cada dia mais isolados, interna e externamente, e quanto mais acuados, maior a agressividade.
O momento exige ação e cuidado, portanto. As manifestações antifascistas, de enfrentamento à escalada autoritária, tendem a crescer à medida que iniciarmos o desconfinamento. Mas do ponto de vista institucional, por outro lado, há ainda uma certa indefinição no horizonte de curto prazo, e o acerto das lideranças e partidos em relação a uma frente ampla pela democracia e contra Bolsonaro é, hoje, tão necessária quanto as mobilizações de rua.
No recém-lançado “Ponto final”, o filósofo Marcos Nobre, professor da Unicamp e presidente do Cebrap, recupera os processos de impedimento de Collor e Dilma, distintos entre si, para sugerir que, no caso de Bolsonaro, é o modelo do primeiro a alternativa que nos cabe seguir. De acordo com Nobre, o que ele chama de “parlamentada” contra Dilma, resultou em uma cisão política e social que, ao menos em parte, foi também responsável pela emergência do bolsonarismo.
Distintamente, afirma, o impeachment de Collor surgiu de um amplo acordo sustentado, fundamentalmente, pelo objetivo comum a diferentes forças políticas, depor o então presidente. E a celebração do acordo, lembra, não incluiu participar do futuro governo, o de Itamar Franco, nem transformar o impedimento em uma disputa pré-eleitoral. Foi esse acordo que tornou possível a transição até às eleições de 1994, que conduziu FHC ao primeiro de seus dois mandatos.
Em linhas gerais, o que Nobre sugere é que um acordo para o impeachment precisa unir forças políticas e sociais para além de disputas partidárias pretéritas e presentes. Entre outras coisas, o afastamento de Bolsonaro não pode servir de palanque eleitoral, o que
significa que as forças democráticas precisam superar “mágoas e ódios acumulados durante anos e que até hoje moldam estratégias e decisões das forças políticas”. Além disso, ele precisa ser amplo o suficiente para aglutinar lideranças nacionais, como Ciro e Lula, mas também governadores e prefeitos que, com a pandemia, passaram a exercer um
protagonismo praticamente inédito na história política recente, além de entidades e movimentos representativos da chamada sociedade civil organizada.
Sem esse acordo, argumenta, um processo de impeachment pode fracassar e mesmo fortalecer Bolsonaro. Mas o mais importante: um processo de impedimento, ele próprio traumático, precisa emergir como a garantia de não continuidade do atual governo. Dito de outra forma, é preciso um esforço para que o afastamento do presidente signifique o início da regeneração da democracia, sem a qual as bases de sustentação do fascismo seguirão inalteradas. Uma tarefa difícil, mais talvez que o próprio impeachment.
O afastamento de Dilma consolidou o esgotamento do pacto firmado em meados de 1980 e que fez o parto da “Nova República”. O que surgiu, no entanto, foi uma República ainda mais frágil e permanentemente em crise, o que não poderia ser diferente, dadas as
condições pouco democráticas que o conduziram. De forma ainda mais contundente, a campanha e a eleição de Bolsonaro deram voz a um reacionarismo autoritário que carrega as marcas de um ódio (à democracia, aos direitos e liberdades, às minorias) difícil de
extirpar, porque em larga medida parte estruturante de nossa história política e resultado de anos, décadas, de uma democracia ela própria excludente e pouco igualitária.
O impeachment de Bolsonaro poderia ser a oportunidade de reinventarmos nossa democracia, não “deixando para trás” mais esse passado autoritário, como já fizemos com a ditadura, mas radicalizando (indo à raiz) das razões que nos levaram a ele – e que passa inclusive, por acertar as contas com a ditadura. Não sei se temos condições para isso, e temo mesmo que não. Mas seria um começo, um jeito de tirarmos algo de proveitoso dessa tragédia, e de aprofundarmos nossa experiência democrática.
*Clóvis Gruner é historiador e professor do Departamento de História da UFPR