Paulo Venturelli
Leio na Folha, vejo na televisão; leio nas revistas, vejo na internet: todos afirmando que a crise do coronavírus vai passar e tudo voltará ao normal. Pergunto: que normal? O do capitalismo concentrador, excludente, predador? Este capitalismo que explora mão-de-obra barata e causa a miséria que está escancarada agora no Brasil? O normal que joga toneladas de dinheiro na conta dos jogadores de futebol, enquanto a ciência por aqui é perseguida, cientistas de carreira exemplar são demitidos por um governo oligofrênico que acredita que a Terra é redonda? Isto nos torna ainda mais dependentes do imperialismo mundial que vem aqui extrair matéria-prima e nos força a comprar os produtos industrializados nos preços impostos por ele. Que normal? O de João Safra com seus 25 bilhões de dólares e de todos os outros banqueiros a nos extorquir até a última gota de sangue? O do Brasil campeão mundial em cirurgias plásticas das dondocas, produto da pura vaidade, enquanto tantos e tantos não têm o que pôr no seu prato para uma refeição digna? O normal do Brasil que devasta a Amazônia para plantar soja, soja esta que é exportada para alimentar porcos na Alemanha, enquanto centenas de milhares de brasileiros morrem de fome? O dos políticos que desviam o dinheiro da merenda escolar? O dos negros e dos gays e das mulheres que são perseguidos, torturados, mortos simplesmente porque são o que são?
E por falar em políticos, os que estão há dezenas de anos no poder fizeram o que pela saúde pública? No Norte e Nordeste a Covid-19 está realizando uma verdadeira devastação. E justo nestas regiões famílias “tradicionais” (para não usar outro adjetivo) estão no poder há séculos, enriquecendo a si e ao seu grupo. Como ficou o SUS por lá? Agora todos correm atrás de remendos por que o povo bate nas unidades de saúde em busca de socorro e não há o instrumental necessário para auxiliá-lo. Então os demagogos aparecem, com seus discursos refinados, na tentativa de justificar o injustificável. Procuram tapar o sol com peneira: nenhuma dessas famílias “poderosas” (de novo, para não usar o adjetivo adequado) teve a mínima preocupação com o zé-povinho. Este só serve para votar nelas – o famoso voto de cabresto que mudou a fórmula, mas continua o mesmo – e, confirmando-as no poder, elas podem mergulhar em suas piscinas de dólares.
O coronavírus tem uma virtude: está realizando um verdadeiro Raio X na estrutura de atendimento da saúde popular. Olhemos para os hospitais sem recursos, sem profissionais, sem insumos, sem EPIs. Hospitais com filas e filas à espera de um respiradouro e todos morrendo à míngua; um respiradouro que no início do ano custava 5 mil dólares e agora está sendo vendido por 54 mil dólares. Este é o normal? E só agora os “governos” descobriram a necessidade deste aparelho tão precioso? Onde foi colocada a verba do SUS? Os demagogos citados gritam que estão encomendando os aparelhos da China, mas aquele país não dá conta de produzi-los, o frete internacional está muito caro etc., etc. Enquanto quadrilhas já estão a postos para desviar o dinheiro dessas compras ou vendendo instrumental falso. Este, o normal? E a esmola em três parcelas “doadas” pelo (des)governo? Foi assim, num passe de mágica, que se descobriu os gravíssimos problemas sociais e econômicos do país? Por que não agiram antes? Todos alegam que Lula não vale nada. E os milhões que ele e sua equipe tiraram da miséria absoluta? Chamam os pobres de “vulneráveis”, belo eufemismo para esconder a desumanidade de uma exploração sem limite, os salários de subsistência que só garantem ao trabalhador a sobrevida e a procriação para que não falte mão-de-obra para as empresas, como Marx já nos alertou há um bom tempo. Com este salário ninguém tem acesso de fato à vida que se entende como moradia, alimentação, água tratada, educação, cultura, esporte, divertimento, cujo resultado é a saúde.
A televisão tem mostrado todo dia como empresas estão mobilizadas para “ajudar” o Brasil contra a pandemia. Com isto elas mostram de quantos recursos dispõem. Por que antes desta tragédia não investiram no salário antes citado? De que valerão os remendos que se prontificam a fazer?
Em lugar do socialmente adequado, o que vemos? Um (des)governo que atenta de propósito contra as normas da OMS, porque apenas lhe interessa salvaguardar o lucro daqueles que alimentaram sua campanha. Vão morrer, estão morrendo milhares? E daí? Todos morrem um dia, não é mesmo? Ao seu lado, o imbecil coletivo a berrar pela volta da ditadura e do AI-5. Será que as más intenções dessa gentalha são tão imensas que ela não faz ideia do que foi uma e outro? Sugiro uma revisada no que escreve Nelson Werneck Sodré:
Reunindo políticos, empresários e militares, o IPES constituiu a peça principal para a montagem da operação que, deflagrada em 1964, estabeleceu a ditadura militar e impôs ao país, com o AI-5, um regime fascista sob o qual não só as franquias democráticas desapareceram como foram realizadas operações destinadas a estabelecer o controle econômico, o controle político e o controle militar do país, tudo sob o comando direto do imperialismo, a que se submeteram, como de praxe, os elementos nacionais ligados à conspiração. Estabelecida a ditadura fascista e gerado o modelo brasileiro de desenvolvimento, também apelidado, pela propaganda organizada, de milagre brasileiro, foi estruturado um aparelho de Estado apto a manter a política adotada, impondo-a a toda a nação, vencidas as últimas resistências.
Note o leitor a afirmação final: vencidas as últimas resistências, ou seja, prisão, tortura, desaparecimento, exílios, traumas ainda não curados em nossa sociedade. É esta natureza de “governo” que o imbecil coletivo busca em suas faixas: “intervenção militar com Bolsonaro”? Este o normal para o qual voltaremos?
Mais adiante continua o autor acima citado:
Nunca o trinômio Deus, Pátria e Família, que tem servido às maiores infâmias do mundo moderno, foi tão solertemente apregoado (pela ditadura) como ungindo a repressão ao regime democrático que, embora muito imperfeito, ia permitindo, aos trancos e barrancos, o andamento do processo de mudança política que a realidade brasileira estava a exigir.
Caro leitor, você lembra de uma campanha política recente sob o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”? Pois é, desta turma não se pode esperar sequer a criatividade. Ela repete as bazófias e os truques de manipulação.
Busco outro autor que nos pode trazer alguma chave para entender a realidade atual em nosso país e no mundo: Slavoj Zizek, de quem são as seguintes palavras:
Seguindo (a) lógica, deve-se então arriscar a tese de que, longe de arrancar os EUA de seu sono ideológico, o 11 de setembro foi usado como o sedativo que permitiu à ideologia dominante renormalizar-se: o período que se seguiu à Guerra do Vietnã foi um longo trauma para a ideologia hegemônica – que foi obrigada a se defender de dúvidas críticas, os vermes que a roíam continuamente não podiam ser eliminados, toda volta a inocência era sentida como uma fraude… até o dia 11 de setembro, quando os EUA foram a vítima, e portanto, puderam reafirmar a inocência de sua missão. Em resumo, longe de acordar os EUA, o 11 de setembro nos fez dormir outra vez, continuar nosso sonho depois do pesadelo das últimas décadas.
Por que trazer à pauta algo que parece tão distante como o 11 de setembro? Há uma razão para isto: os EUA vivem posando de democratas que auxiliam a solidificar as democracias no mundo, sempre lutando pelas liberdades. Este é o aparente sono da inocência. Sabemos que aquele país estende suas sondas pelo mundo, sugando trabalho e riquezas que são canalizados para aquela região do globo, onde boa parte vive muito bem obrigado. Para tanto, os EUA não enrubescem em auxiliar ditaduras, como fizeram por aqui, derrubar governos, interferir na política interna de países que ousam se antepor a seus interesses. Nosso país é mais ou menos um quintal americano. As empresas americanas que vêm para cá, não pagam o mesmo salário que no país de origem. E quando temos um presidente que, assim que eleito, correu para o colo de Trump, faz continência à bandeira lá deles, diz que ama os EUA, está tomando estas atitudes em razão do quê? Há um propósito: colocar ainda mais o Brasil de joelhos diante do “poderio” do Tio Sam. É para este normal que voltaremos no fim do corona?
O nosso sono de inocência foi muito bem embalado pelas artimanhas da Lava Jato. O Grande Inquisidor e seus asseclas cometeram muitos crimes para combater a corrupção. Trago novamente Zizek que também pensa este tipo de combate:
Esse é o grande paradoxo da democracia: dentro da ordem política existente, toda campanha contra a corrupção termina cooptada pela extrema direita populista.
Desde o golpe contra Dilma, até as eleições de 2018, foi escancarado este processo. Aquele que se elegeu alegando ser contra a “velha política”, contra o “toma lá, dá cá”, agora, com grande parte do apoio perdido, com a ameaça de impedimento pela frente, aproxima-se do Centrão, suave nome para uma corja de serpentes e raposas. O tal Centrão vem indicando nomes para cargos. Quem indica? Justo aqueles que têm processos nas costas em razão de “mal feitos” com o dinheiro público. Vocês conhecem a musiquinha que o general Heleno cantou sobre o Centrão há pouco tempo atrás? Procurem e atentem para aquelas palavras. O Messias que daria fim a todas as mazelas brasileiras não conhece estes fatos? Claro que conhece. Porém, importa agora buscar apoiadores que o livrem das próprias teias em que ele se meteu com suas intemperanças, suas casmurrices de bebê chorão, com suas renitentes ameaças a nossa combalida democracia. Ele pensava que chegaria ao Palácio do Planalto e seria aplaudido por todas as estrepolias que faz. Quando é contrariado por outros poderes, vem com a conversa de “agora chega, não vou permitir mais interferências.” Será que para ele democracia significa império-do-só-um-manda? Os poderes são interligados, é de sua natureza que um interfira no outro, já que todos zelam por todos, para evitar abusos, o que nem sempre ocorre, e, quando ocorre, o fulaninho faz cara feia e vem com tentativas de desmandos institucionais. Este é o (des)governo de direita. E assim argumenta Vladimir Safatle:
A função atual da esquerda é mostrar que tal esvaziamento deliberado do campo político é feito para nos resignarmos ao pior, ou seja, para nos resignarmos a um modelo de vida social que há muito deveria ter sido ultrapassado e que evidencia sinais de profundo esgotamento. Cabe à esquerda insistir na existência de questões eminentemente políticas que devem voltar a freqüentar o debate social.
Por tal razão venho arrolando estes fatos e argumentos. Você, leitor, pode pensar que estou chovendo no molhado. Até pode ser. Mas é obrigação nossa insistir em tais questões, trazê-las mais e mais para o debate. Tudo aqui pode ser sabido, apenas não é vivenciado, pois deixamo-nos facilmente encantar pelas músicas ocas de sereias roucas e, quando abrimos os olhos, estamos na lama até o pescoço. A crise do coronavírus está demonstrando isto com todas as letras sangrentas de milhares de mortes que não comovem, nem movimentam os palacianos que, ocupados com suas churrascadas, saúdam a morte como se nosso primeiro dever fosse morrer e não viver plenamente. Todavia, se construímos uma sociedade em que milhares e milhares sequer têm condição de comprar um sabonete e nos orgulhamos de ser a oitava economia do mundo, o país do futuro, o país de grande potencial, alguma coisa está errada no modo como nos organizamos. Ou não? Ou é natural ser/estar desta forma? Lembre-se, caro leitor, nada do que diz respeito ao ser humano e à sociedadé é natural. Tudo é histórico. Ou seja, é assim agora, pode deixar de ser assim amanhã, e é para isto que devemos nos educar, para isto lutar e nesta luta está a grandeza de uma vida que vale a pena.
O Pato Donald e seus sobrinhos, Huguinho, Zezinho e Luizinho, criadores do gabinete do ódio, fomentam paranoias, sempre questionáveis contudo, vendo o comunismo grassar de todos os cantos, defendendo um nacionalismo malsão que só favorece aos seus desmandos. Safatle afirma que “não temos nada o que fazer com nacionalismos e com delírios identitários que tentam nos fazer crer, por exemplo, que os valores ocidentais estão correndo risco.” Quem corre risco é nosso trabalhador com seu suor sugado por aqueles cujas sondas se imiscuem no esforço diário de quem dá duro 8 horas por dia e vive um mês sempre mais longo que o salário. Há cálculos por aí evidenciando que, para ganhar o que ganha, um operário deveria trabalhar apenas 8 horas por mês. Assinado em 1946, em quanto deveria estar no presente o salário mínimo? Procure saber o leitor…
Com a tragédia da pandemia atual, temos visto o horror que é a divisão de classes sociais no Brasil. A burguesinha é levada pela mamãe a Nova Iorque para assistir a um musical qualquer e faz grandes postagens no seu facebook. A faveladinha sequer conhece o centro da cidade, sequer tem o direito de comer um pastel na loja do chinês da esquina. Outra vez: tais quadros são naturais? Trago os argumentos de Jessé Souza:
As classes sociais só podem ser adequadamente percebidas como um fenômeno, antes de tudo, sociocultural e não apenas econômico. Sociocultural posto que o pertencimento de classe é um aprendizado que possibilita, em um caso, o sucesso e, em outros, o fracasso social. São os estímulos que a criança de classe média recebe em casa para o hábito (sic) de leitura, para a imaginação, o reforço constante de sua capacidade de autoestima, que fazem com que os filhos dessa classe sejam destinados ao sucesso escolar e depois ao sucesso profissional no mercado de trabalho. Os filhos dos trabalhadores precários, sem os mesmos estímulos ao espírito e que brincam com o carrinho de mão do pai servente de pedreiro, aprendem a ser afetivamente, pela identificação com quem se ama, trabalhadores manuais desqualificados. A dificuldade na escola é muito maior pela falta de exemplos em casa, condenando essa classe ao fracasso escolar e mais tarde ao fracasso profissional no mercado de trabalho competitivo.
Deveríamos estampar tais palavras na parede de nosso quarto de dormir. Assim, as leríamos a cada manhã ao acordar, introjetaríamos suas verdades, para não sair por aí expectorando que todo pobre é vagabundo. Eu mereço meu salário alto por que trabalhei, me esforcei, ralei noites a fio. Este neguinho aí só quis saber de futebol, carnaval e bunda, portanto, favela com ele, ou melhor, salário mínimo nele que esta é a vontade do Todo Poderoso Senhor do Infinito. Nada mais cômodo e covarde que um pensamente assim modelado. Ele cobre nossas culpas históricas.
Como o ensino tem importância inegável, e a educação brasileira, pública, em geral está jogada às baratas, chamo Nuccio Ordine para me ajudar a pensar:
Com crueldade, muitas empresas (que durante décadas gozaram da privatização dos lucros e da socialização das perdas) despedem os operários, enquanto os governos suprimem os postos de trabalho, a educação, a assistência social aos portadores de necessidades especiais e a saúde pública. O direito de ter direitos (…) se tornou, de fato, subordinado ao domínio do mercado, com o risco progressivo de se cancelar qualquer forma de respeito às pessoas. Transformando os seres humanos em mercadoria e dinheiro, esse mecanismo econômico perverso deu vida a um monstro impiedoso e apátrida, que acabará por negar às futuras gerações qualquer forma de esperança.
É preciso dizer mais? Quem puder ler tais afirmações que pense e as transporte para a vivência no cotidiano.
Vivemos numa sociedade utilitária. Tudo precisa dar lucro já. O deus mercado, citado antes, entrincheira-se em todas as ações e instituições, modela a sociedade e as mentes e muitas vezes acabamos exercendo papéis, profissões só pelo mísero dinheiro; quase nunca encontramos correspondência entre o que somos e o que fazemos para ganhar a vida. A insatisfação, a angústia, o confinamento dominam nossa rotina e acabamos não enxergando mais perspectivas libertadoras. Ou, como quer Terry Eagleton:
A ironia é que, embora (a) autodeterminação seja a essência da humanidade, a grande maioria de homens e mulheres ao longo da história foi incapaz de exercitá-la. Esses indivíduos não tiveram permissão para ser plenamente humanos. Em vez disso, suas vidas, na maior parte, foram determinadas pelos monótonos ciclos da sociedade classista. O porquê desse fato e como isso pode ser sanado é a essência da obra de Marx, que investiga como podemos passar do reino da necessidade para o da liberdade, ou seja, nos tornarmos menos semelhantes a texugos e mais semelhantes a nós mesmos. Tendo nos levado aos umbrais de tal liberdade, Marx nos deixa ali, para que nos viremos por conta própria. Como poderia haver liberdade se assim não fosse?
Então está claro. Marx aponta caminho para desenvolvermos uma vida afeita ao que nós somos e queremos ser. Segundo ele, deixaremos o papel de fantoches de lado, encontraremos uma vida soberbamente humana e nela nos construiremos como um ser efetivo para nós e para o outro.Voaremos alto e ninguém nos fará rastejar. Certamente por isto, os estudos marxistas vêm sendo tão perseguidos em nosso país. Numa sociedade nos moldes anteriores, um coronavírus não colocaria o mundo de ponta cabeça como ocorre no presente. As instituições funcionariam, em especial as de saúde pública, e não estariam encurraladas como as vemos. Numa sociedade assim seríamos livres e saudáveis, com talentos bem desenvolvidos, encontrando em nossa tarefa de viver o cotidiano a alegria e a esperança que nos foram usurpadas pela selvageria de uma sociedade egoísta, centrada no umbigo de cada um. Graças à pandemia, todos vêm falando em SOLIDARIEDADE. Ela acabará com o final da crise, se houver de verdade um final? Ou ela continuará como a mola propulsora de nossas ações, o ponto de partida e chegada do que somos e fazemos? É isto, caro leitor. Voltar ao normal! Para qual normalidade você deseja regressar?
As citações acima pertencem aos seguintes livros, cuja leitura recomendo:
EAGLETON, Terry. Marx estava certo. Editora Nova Fronteira.
ORDINE. Nuccio. A utilidade do inútil: um manifesto. Editora Zahar.
SAFLATE, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome. Editora Três Estrelas.
SODRÉ, Nelson Werneck. Vida e morte da ditadura: 20 anos de autoritarismo no Brasil. Editora Vozes.
SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Editora Leya.
ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real. Editora Boitempo.