Construir o mundo novo em meio à grande tragédia

Thomaz Ferreira Jensen

O Brasil é hoje, 9 de maio, o centro mundial da pandemia de Covid-19 e expoente maior da recessão econômica, do subdesenvolvimento e da dependência. Há pouco mais de um mês o País registrava um total de 300 mortos pela Covid-19 e pouco mais de 7,9 mil casos confirmados. Agora, os contaminados passam de 135 mil e os mortos já são 10 mil pessoas, embora a subnotificação e a falta de testes nos levem a avaliar que a realidade é muito mais trágica. Estimativas do Laboratório de Inteligência em Saúde da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo indicam que os casos no Brasil já devem superar 2 milhões, ou 14 vezes mais do que indicam os números do Ministério da Saúde.

No último mês, sistemas de saúde entraram em colapso, como em Manaus, Fortaleza e São Luís, a pandemia interiorizou-se para as cidades médias e pequenas em todo o País e cidades adotam medidas para reforçar o isolamento social, a caminho do “lock-down”, como São Paulo, que já tornou mais restritivo o rodízio de veículos. Os infectados e os mortos nessa escalada da pandemia são, sobretudo, os pobres e moradores das periferias urbanas. Talvez por isso, parte da elite nacional intensifique gestões em apoio ao retorno das atividades econômicas, como fez Guilherme Benchimol, presidente e fundador da XP Investimentos, para quem “o pico da doença já passou quando a gente analisa a classe média, classe média alta”.

Com esse propósito, 15 lobistas de diferentes setores da indústria marcharam do Planalto ao STF, liderados por Bolsonaro e por militares que ocupam postos-chave em gabinetes da Presidência, para uma reunião improvisada com o Presidente da Suprema Corte, Ministro Dias Toffolli, no dia 7 de maio. Lá, a genocida dicotomia entre saúde e economia foi levada ao paroxismo por um dos lobistas, que ousou falar em “indústria na UTI” e “morte de CNPJs”.

Para o registro histórico, lá estavam: ABIQUIM (Indústria Química), ABIPLAST (Indústria de Plástico), ABIT (Indústria Têxtil e de Confecção), ABIMAQ (Indústria de Máquinas e Equipamentos), SNIC (Indústria do Cimento), INTERRFARMA (Indústria Farmacêutica de Pesquisa), ABRINQ (Fabricantes de Brinquedos), ABICALÇADOS (Indústria de Calçados), ELETROS (Fabricantes de Produtos Eletroeletrônicos), CBIC (Indústria da Construção), FARMABRASIL (Indústria Farmacêutica), AEB (Comércio Exterior do Brasil), Coalizão Indústria, ABINEE (Indústria Elétrica e Eletrônica) e ANFAVEA (Fabricantes de Veículos).

Nossas projeções no DIEESE para o desempenho da economia brasileira ao longo desse ano indicam provável queda de 8,5% do PIB com aumento do volume de desocupados em 4,4 milhões, o que elevaria o total, no Brasil, para cerca de 17 milhões de trabalhadores desocupados ao final deste ano.

As vítimas econômicas da Covid-19 também se multiplicam exponencialmente. Segundo estimativa da Instituição Fiscal Independente, órgão do Senado Federal, o número de beneficiários do auxílio emergencial para trabalhadores informais pode saltar dos atuais 50 milhões de pessoas para até 112 milhões, mais da metade da população brasileira. A redução da renda é maior nas faixas com renda per capita de até R$ 500, em que 51% das pessoas perderam metade ou mais de suas rendas, cerca de 58 milhões de pessoas. Entre essas, 24% declararam ter ficado sem renda nenhuma durante a pandemia, realidade que já afeta mais de 13 milhões de brasileiros.

A pandemia aprofundou a crise e a recessão econômica que já estavam presentes no País antes da Covid-19 e está acentuando o abismo da desigualdade social. Dados do IBGE apontam que os 10% mais ricos se apropriam sozinhos de 43% de toda renda do País, alcançando o maior patamar histórico de concentração desde que a pesquisa é realizada.

No mercado de trabalho, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do IBGE, identificou que a taxa de desocupação subiu para 12,2% no primeiro trimestre deste ano, uma alta de 1,3 ponto percentual na comparação com o último trimestre de 2019, com mais 1,2 milhão de pessoas desocupados, elevando o total para 12,9 milhões de trabalhadores desempregados no Brasil.

Houve queda de 2,5% no contingente da população ocupada, cerca de 2,3 milhões de pessoas, o maior recuo de toda a série histórica – desse total, 1,9 milhão é de trabalhadores informais. Com isso, a taxa de informalidade teve uma pequena variação, passando de 41% no último trimestre  de 2019 para 39,9% no primeiro trimestre deste ano, o que representa um total de 36,8 milhões de trabalhadores.

O total de pessoas fora da força de trabalho subiu para 67,3 milhões, batendo novo recorde desde 2012. Esse grupo é composto por pessoas que não procuram trabalho, mas que não se enquadram no desalento. Os desalentados, pessoas que desistiram de procurar emprego, somaram 4,8 milhões, praticamente igual ao número do último trimestre de 2019. Como temos analisado, a intensificação da situação de precariedade na inserção do trabalho captada pela pesquisa decorre das medidas implantadas pelas reformas trabalhistas desde 2017.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgou monitoramento sobre a situação da ocupação diante da pandemia, estimando que 1,6 bilhão de trabalhadores informais estão ameaçados pelo aumento da pobreza. Os primeiros impactos já fizeram a renda dos trabalhadores informais cair 60% em um mês. Na África e nas Américas esse índice foi ainda maior, de 81%, enquanto na Ásia a redução foi de 21,6% e na Europa, chegou a 70%. A OIT recomenda que os Estados Nacionais mantenham as políticas de isolamento social e atuem para diminuir a exposição dos trabalhadores informais ao vírus e para garantir renda e alimentação às suas famílias.

Nos EUA, durante o mês de abril foram fechados 20,5 milhões de postos de trabalho, queda mais acentuada desde a Grande Depressão da década de 1930, segundo o relatório mensal de emprego do Departamento do Trabalho dos EUA. A taxa de desemprego saltou de 3,5% em fevereiro para 14,7% em abril, superando o recorde do pós-Segunda Guerra Mundial, de 10,8%, atingido em novembro de 1982.

Os indicadores de inflação de abril mostram que o nível geral de preços deve experimentar meses de deflação ao longo deste ano, por conta da redução de renda dos trabalhadores, potencializada pela alta do desemprego, e pela retração nas cotações das commodities. Mesmo assim, em abril, houve aceleração nos preços de alimentos, captada na Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos, do DIEESE. Em São Paulo, a cesta custou R$ 556,25, alta de 7,28% em relação a março. No ano, o conjunto de alimentos variou 9,82% e, em 12 meses, 6,55%. Com base na cesta de maior valor, ou seja, São Paulo, estimamos que o Salário Mínimo Necessário deveria ser de R$ 4.673,06, ou 4,47 vezes o mínimo vigente de R$ 1.045,00.

A produção industrial caiu 9,1% em março, frente a fevereiro, o pior resultado para o mês desde 2002. Em relação ao mesmo período de 2019, a queda foi menos intensa, de 3,8%, mas o quinto resultado negativo seguido nessa comparação. Assim, o setor industrial acumula queda de 1,7% no ano e de 1% em 12 meses, de acordo com a Pesquisa Industrial Mensal, do IBGE.

Se as paralisações em diversas plantas industriais, por conta do necessário isolamento social exigido para combater a Covid-19, explicam a queda de março, os dados de mais longo prazo evidenciam que a estagnação da atividade industrial vem desde o ano passado.

A redução de 9,1% observada na passagem de fevereiro para março foi também a mais acentuada desde maio de 2018 (-11%), quando ocorreu paralisação dos caminhoneiros, e levou o patamar de produção a retornar a nível próximo ao de agosto de 2003. A atividade que teve o impacto negativo mais importante foi a de veículos automotores, reboques e carrocerias (-28%).

O estoque da dívida pública federal atingiu R$ 4,2 trilhões em março, sendo que R$ 4 trilhões referem-se à dívida interna. Quem ganha dinheiro com isso? Metade dos detentores de títulos da dívida são bancos, fundos de investimento e seguradoras. As instituições financeiras detêm R$ 1 trilhão desse montante, enquanto os fundos de investimento mantêm outro R$ 1 trilhão em seu poder. As seguradoras respondem por R$ 155 bilhões desse estoque. Os dados são do Tesouro Nacional, do Ministério da Economia.

O gasto com a dívida pública no primeiro trimestre de 2020 chegou a R$ 288,5 bilhões. Para quem? Bancos, fundos de investimento, seguradoras… E essas instituições negociaram em março, em média, um volume financeiro de títulos da dívida pública da ordem de R$ 54,9 bilhões, ao dia.

Para efeito de comparação, o impacto fiscal no orçamento da União das medidas emergenciais diante da pandemia podem chegar a R$ 282,2 bilhões, considerando, por exemplo, R$ 80 bilhões do auxílio emergencial, os R$ 40 bilhões para a compensação para a redução dos salários dos trabalhadores formais por até três meses e 13,8 bilhões em créditos extraordinários para a Saúde. As estimativas são da Instituição Fiscal Independente.

Por que no Brasil a pandemia se transforma numa tragédia humanitária? Os impactos desiguais da pandemia na população brasileira devem-se à desigualdade social que nos caracteriza estruturalmente. É importante registrar que, em 2019, o rendimento médio mensal real do trabalho do 1% da população com os rendimentos mais elevados, era de R$ 28.659 – 33,7 vezes o rendimento dos 50% da população com os menores rendimentos, de R$ 850.

O rendimento médio real dos ocupados no Brasil, em 2019, foi de R$ 2.244, praticamente inalterado em relação a 2018. Se no Sudeste esse valor médio chega a R$ 2.645, no Nordeste era de R$ 1.510, evidenciando a dimensão regional da desigualdade social.

Quando os dados são analisados pelo critério de cor da pele, evidencia-se a desigualdade que remete à herança escravocrata. O rendimento médio mensal real de todos os trabalhos das pessoas brancas foi de R$ 2.999 em 2019. As pessoas pardas receberam em média R$ 1.719, enquanto as pretas somente R$ 1.673. Também perduram as diferenças de gênero: o rendimento de todos os trabalhos dos homens (R$ 2.555) é 28,7% mais alto que o das mulheres (R$ 1.985). Essas informações fazem parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do IBGE.

E o que dizer dos impactos de um vírus que se propaga aceleradamente diante de um quadro de carência de saneamento básico? A quantidade de domicílios ligados à rede geral de esgotamento sanitário ou com fossa ligada à rede atingiu 68,3% em 2019, Ou seja, quase um terço dos lares brasileiros não tinha saneamento adequado. Na região Norte, apenas 27,4% dos domicílios estão com esgoto satisfatório. No Nordeste, menos da metade da população tem acesso à rede de esgoto: 47,2%.

É da maior importância que acordos políticos sejam costurados e resultem na aplicação de medidas de urgência. Está claro que uma crise dessa gravidade se transforma a cada dia numa tragédia por conta da anomia e da desconexão causada pelo presidente da república, que atua para a ruptura com governadores, prefeitos, Poder Judiciário e Congresso Nacional.

Nesse sentido e em meio a tantas notícias ruins, o Movimento Sindical brasileiro foi capaz de construir um histórico Ato Unificado pelo Dia 1º. de Maio. Como afirmou o ex-Presidente Lula em sua mensagem à classe trabalhadora,“a História nos ensina que grandes tragédias costumam ser parteiras de grandes transformações. O que nós esperamos é que o mundo que virá depois do coronavírus seja uma comunidade universal em que o homem e a mulher, em harmonia com a natureza, sejam o centro de tudo, e que a economia e a tecnologia estejam a serviço deles – e não o contrário, como aconteceu até hoje. No mundo que eu espero o coletivo haverá de triunfar sobre o individual, a solidariedade e a generosidade triunfarão sobre o lucro. Um mundo em que ninguém explore o trabalho de ninguém, em que se respeitem as diferenças entre um e outro, em que absolutamente todos disponham de ferramentas para se emancipar de qualquer tipo de dominação ou de controle”.

Outro dado de vitalidade do Movimento Sindical brasileiro são as informações sobre greves em 2020 sistematizadas pelo DIEESE, apontando que aconteceram 280 paralisações no acumulado entre janeiro e abril, sendo 143 de trabalhadores na esfera privada. Das greves de trabalhadores na esfera pública, 121 foram deflagradas pelo funcionalismo público. Em abril, já em plena pandemia, foram registradas 32 greves, com predominância dos trabalhadores rodoviários do transporte coletivo, denunciando o atraso no pagamento de salários, a ameaça de demissões e de diminuição nos vencimentos. Também os profissionais da saúde, na impossibilidade de suspender as atividades, promovem atos curtos e com pequena participação denunciando o fato de que estão trabalhando sem receber salários (especialmente trabalhadores das Organizações Sociais) e também sem receber regularmente equipamentos de proteção (máscaras, aventais) e insumos hospitalares.

Os critérios que orientam a política do Governo Federal revelam seu caráter profundamente anti-social e antinacional. A economia foi colocada à frente da saúde da população, com prioridade absoluta à defesa do grande capital. Os banqueiros foram os que receberam a maior atenção. Preocupado em garantir a solvência do sistema financeiro, o Banco Central tomou generosas providências para aumentar a liquidez do sistema financeiro.

Como amplamente denunciado pela Auditoria Cidadã da Dívida, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 10/2020, aprovada pela Câmara dos Deputados em 6 de maio permite ao Banco Central adquirir papéis podres dos grandes bancos e investidores acumulados há mais de quinze anos, sem limite algum. O próprio presidente do Banco Central já havia declarado que a previsão é de um custo inicial de R$ 972,9 bilhões.

As declarações públicas do Presidente em apoio à orientação ultra-liberal na política econômica, com beneplácito dos militares que estão no Governo, indicam que não há saída para os trabalhadores do Brasil que passe por ações do atual Governo Federal.

Por isso, ganham ainda mais significado as palavras de Lula no Ato do 1º. De Maio: “Está nas mãos dos trabalhadores, a tarefa de construir esse novo mundo que vem aí”.

O desafio emergencial é mobilizar todas as energias do país para o enfrentamento da pandemia. Como fizeram quase todos os países do planeta, é necessária a suspensão de todas as atividades não essenciais e a garantia de renda mínima universal para o enfrentamento da dupla crise que abala a vida dos brasileiros.

O isolamento social, diante da pandemia, é um direito social. E, para que todos tenham acesso a esse direito, os trabalhadores devem ter plena garantia de emprego e renda. Uma política de renda mínima para todos os trabalhadores é, neste momento, uma política sanitária fundamental e uma política econômica estratégica. A duração e extensão da renda mínima terão que ser compatíveis com o tempo necessário para a superação da pandemia, o que já coloca o desafio de garantir a vigência do auxílio emergencial para além dos três meses iniciais.

A vida deve estar à frente do lucro e do pagamento da dívida. Os interesses privados que aproveitam o desespero para aumentar a exploração do trabalho e a concentração da riqueza, como Guedes tem feito, não podem preponderar mais como razão de Estado.

A síntese dessa ação emergencial pode ser os dizeres de um cartaz que trabalhadores italianos em quarentena estenderam numa sacada no mês passado: “Trabalhar menos. Trabalharem todos. Produzir o necessário. Redistribuir tudo.” Direitos já!

No atual contexto de exceção, em que o governo ampliou a possibilidade de negociação entre patrões e trabalhadores, a saída para a sobrevivência, garantia de emprego e renda e para assumir a tarefa de construir um novo mundo, passa pelo fortalecimento, mobilização e organização da classe trabalhadora.

 

Thomaz Ferreira Jensen, 43 anos, é economista, graduado pela Faculdade de Economia da USP. Desde julho de 2007 trabalha como assessor técnico do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos). Assessora também encontros organizados por comunidades e movimentos populares sobre conjuntura, formação social e econômica do Brasil e reflexão sobre práticas do trabalho de base. É membro do conselho consultivo da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.

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